sábado, 30 de outubro de 2021

Prefácio

       Na sua maioria, os municípios portugueses nasceram, estruturaram-se e ajustaram a sua configuração territorial ao longo de um extenso período, que se iniciou entre 1055 e 1065, com as campanhas de Fernando I de Leão, e se encerrou em 1383, depois de atravessar uma época de grandes provações.

     Os acontecimentos mais importantes desse período, na perspectiva da história dos municípios, ocorreram entre o início do governo do Conde D. Henrique, em 1095, e a morte do rei D. Dinis, em 1325.

     Decorridos os tempos iniciais, em que partilharam o território preferencialmente com as entidades senhoriais, cumulando os magnates, as dioceses, os conventos e as ordens militares com doações generosas, os monarcas convenceram-se gradualmente do papel que estava reservado às comunidades constituídas por gente anónima e laboriosa, na consolidação das fronteiras, no desenvolvimento do país, na defesa da ordem pública e até na administração local e no financiamento do estado.

     De norte a sul, o país matizou-se com uma notável série de aglomerados habitacionais, de variegadas dimensões, que baseavam a sua sobrevivência no funcionamento de concelhos, de início, muitas vezes, simples concelhos de aldeia, que paulatinamente se transformaram em concelhos de município ou, quando as circunstâncias o aconselharam, se integraram noutras comunidades de alfoz mais vasto, dotadas de meios humanos e de recursos materiais suficientes para sobreviverem em conjunto.

     O reconhecimento oficial da existência e do papel destas comunidades, ou o fornecimento do estímulo para que se criassem, coube, na maior parte dos casos, aos monarcas, mas não rareiam os exemplos de outra intervenções, desde os simples particulares aos bispos, aos abades de mosteiros e aos mestres das ordens militares.

     O funcionamento dos concelhos implicou relacionamentos bilaterais com o rei e por vezes com outras entidades, como os municípios vizinhos, as instituições e os particulares que detinham algum poder sobre o espaço circundante.

     O processo relativo ao nascimento dos municípios, à função que desempenharam no povoamento, na organização, na defesa e no desenvolvimento do território, aos problemas que tiveram de enfrentar e ao modo como se aguentaram no meio de todas as dificuldades, constitui o objecto do presente estudo.

     Já anteriormente nos debruçámos sobre as Origens dos Municípios Portugueses, analisando especialmente o período que decorreu até 1223, embora sem excluir alguns olhares de relance sobre as décadas posteriores, especialmente no que se referia à genealogia dos diversos forais e à difusão dos vários paradigmas. Baseou-se esse estudo na análise de textos, na sua maioria, publicados, embora nos acompanhasse sempre a preocupação de conferir os originais ou, na sua falta, os mais antigos apógrafos, quando eles existissem na Torre do Tombo.

     Depois desse primeiro trabalho, fazia-se sentir a necessidade de aprofundar a análise em relação ao reinado de D. Afonso III e de empreender o estudo integral da história dos municípios, desde a base, especialmente durante o longo e fecundo reinado de D. Dinis. O desejo de compreender melhor o fenómeno, contemplando-o numa perspectiva mais ampla, depois de conhecermos os antecedentes, foi o bastante para nos aliciar a prosseguir esse estudo até ao fim da primeira dinastia.

     Apoiámo-nos fundamentalmente na documentação registada nos livros das Chancelarias Régias e noutros núcleos documentais guardados nos arquivos da Torre do Tombo. Além dos textos relativos às cortes, apenas para uma pequena parte da Chancelaria de D. Dinis e para as Chancelarias de D. Afonso IV e de D. Pedro I, nos pudemos valer, com as devidas precauções, da documentação já publicada. Foi necessário proceder à leitura e à transcrição de documentação relativa aos municípios de uma grande parte da Chancelaria de D. Afonso III, de quase toda a Chancelaria de D. Dinis e de toda a Chancelaria de D. Fernando.

     Excepcionalmente, conseguimos proceder à consulta de alguns documentos de outros núcleos documentais. Naturalmente, alguns arquivos de vários municípios, das mitras diocesanas, de alguns conventos e das ordens militares poderão fornecer ainda preciosos contributos para a história dos municípios durante a Idade Média.

     Nesse como noutros domínios, o presente estudo não é nem pretende ser uma obra acabada e perfeita, e muito menos arrogar-se a veleidade de constituir a última palavra – se é que em História alguma vez se poderá dizer a última palavra...

Divide-se a presente dissertação em três partes.

     Na primeira parte, abordam-se, de vários ângulos, diversos aspectos gerais: uma visão geral dos trabalhos de investigação ou de síntese dedicados à história dos municípios ou a temas afins, na Europa ocidental e em Portugal, constitui a matéria dos dois primeiros capítulos; no capítulo subsequente, analisam-se especificamente as principais teorias sobre a origem dos municípios, assim como os diversos contributos e influências que terão estado na sua génese; no quarto capítulo, estuda-se, de um ponto de vista geral, o processo conducente à criação dos municípios: os objectivos, a iniciativa, a elaboração do foral, a outorga, os intervenientes; as estruturas orgânicas de um município medieval, o território, a sociedade, os órgãos de governo, os funcionários e os mecanismos de funcionamento correspondem à temática do último capítulo.

     Na segunda parte, seguindo um itinerário diacrónico, traça-se uma panorâmica da história dos municípios ao longo dos vários reinados: o primeiro capítulo abrange a fase condal e os reinados desde D. Afonso Henriques até D. Sancho III, no meio dos quais se realça o governo do nosso primeiro rei e o de D. Sancho I; o capítulo seguinte debruça-se sobre o reinado de D. Afonso III, particularmente fértil no âmbito da organização e do desenvolvimento económico do território; com D. Dinis, a quem é dedicado o capítulo III, a história dos municípios atinge a sua máxima dinâmica, e, tal como sucede com a sua definição externa, delimitada pelas fronteiras, o país adquire uma configuração interna muito próxima da que viria a manter nos séculos seguintes; os reinados que se lhe seguem são tempos marcados pela decadência: acentuada pelas epidemias, a guerra é um dos grandes factores da crise, a que, no que se refere ao governo municipal, se procurou dar algum remédio com o “chamamento geral”, iniciado com D. Afonso IV e concluído com D. Pedro I – reunidos no capítulo IV – mas a legislação centralizadora, inicialmente destinada a corrigir os abusos da própria administração local, começará a cercear a autonomia dos concelhos; o capítulo V ocupar-se-á da desorientação que caracterizou o reinado de D. Fernando e das provações a que os municípios se viram sujeitos e que tiveram o condão de unir as populações quando soou a hora da verdade, ao precipitar-se a crise dinástica.

     Na terceira parte, estudam-se as identidades regionais, procurando iluminar os laços de parentesco que unem os municípios em cada uma das diversas áreas geográficas do país. Nesses grandes espaços naturais, que se transformaram em grandes espaços sociais, há formas de organização e de governo que se reproduzem, por corresponderem melhor do que outras à especificidade da localização geográfica e do relacionamento entre as comunidades. Os diversos capítulos são dedicados a esses grandes espaços: Entre Minho e Vouga; Trás-os-Montes; Beira Alta e Douro Superior, com uma extensão ao Minho setentrional; Alto Alentejo e Beira Baixa; na órbita de Coimbra; as povoações que receberam um foral segundo o paradigma de 1179. Dentro de cada um destes espaços, distinguem-se algumas sub-áreas, a que, na devida altura, se faz a devida referência. Com a preocupação de as enquadrar numa perspectiva global, detivemo-nos a assinalar algumas das vicissitudes que marcaram a história de muitos municípios, em cada uma dessas áreas.

     Na última parte da dissertação, acrescentamos uma amostra documental, com a transcrição de algumas dezenas de documentos    seleccionados entre os que se foram referindo ao longo dos vários capítulos. Segue-se o elenco das fontes e da bibliografia consultada ao longo da preparação e da elaboração deste trabalho. Na mira de que venha a ser útil, junta-se um índice remissivo.

 

António Matos Reis