sábado, 30 de outubro de 2021

Livro I - Perspectivas gerais

Ao iniciarmos esta perspectiva de conjunto sobre a história dos municípios portugueses ao longo de toda a primeira dinastia, lançaremos um olhar de relance sobre as obras mais marcantes que, nos últimos tempos, nos legaram os historiadores no âmbito desta temática e de temáticas afins, especialmente nos países da Europa que nos estão próximos e cuja produção historiográfica, por diversas razões, é mais acessível, tornando-se apta a exercer uma ampla influência sobre os estudiosos portugueses. Sem omitir outras referências, é designadamente o caso da historiografia francesa, que em tempos recentes tem dedicado uma especial atenção à história dos municípios, das cidades e das aldeias medievais, assim como à organização das comunidades rurais e urbanas, às dinâmicas do povoamento e da organização do território. Para lá da fronteira, mas por razões de vizinhança, os diversos espaços ibéricos possuem uma história que se assemelha à nossa, em virtude da existência de um passado em grande parte comum, desde as mais remotas origens até à ocupação romana, ao domínio suevo e visigótico, à presença muçulmana e à resistência moçárabe e, finalmente, às vicissitudes da reconquista; a historiografia espanhola tem-se debruçado atentamente sobre os fenómenos relacionados com a instalação e reorganização de comunidades, a seguir ao período da reconquista, e sobre os mais diversos aspectos do povoamento, em áreas geográficas tão diversificadas, como os espaços setentrionais, o noroeste, o centro, o sul e o levante hispânicos, e não podemos manter-nos alheios aos resultados, largamente positivos, dos vários estudos até agora publicados. Felizmente, também em relação a Portugal se prossegue uma frutuosa caminhada, de que se colhem os primeiros frutos, e novas e promissoras perspectivas se abrem para o futuro.

Embora muitas das obras produzidas ao longo dos séculos XIX e XX, sobretudo como reflexo da formação jurídica de vários historiadores, se tenham ocupado de aspectos institucionais que hoje não se consideram os mais candentes, há uma panóplia de temas a cuja ponderação o historiador não tem o direito de se esquivar, especialmente porque abrangem um conjunto de factores que exerceram ou podiam ter exercido uma influência decisiva na organização e no modo de vida das comunidades. Nesse âmbito, não se podem omitir as diversas teorias, expostas e defendidas por vezes com grande entusiasmo e paixão, por alguns autores espanhóis e portugueses. Sem ignorar o fecundo contributo de muitas das observações atentamente produzidas por esses autores, é possível temperá-las nos tempos actuais com novos matizes e acrescentar-lhe outros pontos de vista, que resultam das análises metódicas, ainda que nem sempre desapaixonadas, da historiografia mais recente. Pensamos em temáticas como a da origem romana dos municípios, a teoria do ermanento e a teoria da origem “germânica” do municipalismo peninsular, mas temos de considerar também as influências da herança muçulmana e moçárabe, da imigração franca e dos condicionalismos próprios dos tempos da reconquista, assim como as teorizações levadas a cabo sob a influência da doutrina marxista acerca da origem dos municípios. E também não devemos ignorar a energia criativa do próprio homem, empenhado na luta pela sobrevivência, no meio das adversidades que os indivíduos só conseguem vencer quando se reúnem em comunidade.

Ultrapassada a análise das teorias elaboradas com o objectivo de explicar as origens do municipalismo, importa, mesmo de um ponto de vista genérico, que terá de admitir a existência, em concreto, de múltiplas variantes, analisar o processo que conduziu à fundação dos municípios. Vários problemas se levantam: que objectivos gerais se pretendiam alcançar com a criação de um município, que objectivos imediatos a ela presidiram, em cada momento? Quando esses objectivos se revelavam suficientemente imperiosos para que a fundação acontecesse, a quem podia ou devia pertencer a iniciativa de a preparar ou de a concretizar? Tal iniciativa seria unilateral ou poderia englobar vários protagonistas e recolher diversos contributos? A quem competia a decisão definitiva? Uma vez tomada esta, que trâmites se lhe seguiam ou deviam seguir, na elaboração do documento fundador (e será que este sempre existiu)? Como se definiam os espaços a contemplar, a comunidade abrangida, as normas a plasmar no documento? Qual era, nesse processo, o papel reservado ao monarca ou ao magnate, de quem dependiam o espaço, a inovação e a comunidade que era destinatária do acto, e aos próprios destinatários? Numa fase imediata, que passos levavam a dar forma ao documento: quem o elaborava, de que modelos ou paradigmas dispunha, a que requisitos havia de obedecer o formulário? Seguia-se a validação do documento e a sua outorga: quais eram os intervenientes que participavam neste processo e que trâmites eram seguidos?

Após o acto fundador, o município ganhava corpo, através da criação de um conjunto de estruturas orgânicas mínimas, que lhe permitiam funcionar, garantir os necessários meios de acção, estabelecer regras e urgir o seu cumprimento. Importa analisar as relações da comunidade com o seu próprio espaço, o modo como este se hierarquizava, desde o centro até à periferia, e como dentro dele os homens se relacionavam, em sociedade, para além das inevitáveis diferenças de estatuto económico e até de classe, de sexo e de etnia. É indispensável observar como é que o município funcionava, a começar pela reunião da assembleia geral dos munícipes e a continuar na acção do restrito concelho responsável pela gestão ordinária e quotidiana, cuja constituição e evolução é necessário conhecer, pelo menos sumariamente. O seu funcionamento exigia, a partir de certo momento, o suporte de um crescente número de funcionários, de cuja natureza e funções devemos fazer uma ideia.

        A cada um destes quatro pontos se referem os capítulos que, em igual número, se vão seguir. Só depois nos abalançaremos a delinear a marcha histórica dos municípios, numa perspectiva diacrónica, ao longo desse importante período fundacional que se inicia nos tempos condais e prossegue até ao final da primeira dinastia.