sábado, 30 de outubro de 2021

Livro II – Percurso diacrónico

 Embora como estado independente Portugal nasça no século XII, o período histórico que antecede esta data, e especialmente aquela fase que se inicia em meados do século XI, é de uma importância crucial na definição do território e na modelação da sociedade portuguesa. É necessário analisar o papel que nesse domínio coube às povoações que deixaram de estar sob o domínio muçulmano e foram integradas nos reinos cristãos, uma vez que o modo de se relacionar com algumas comunidades presentes no território conquistado por Fernando I e Afonso VI de Castela e Leão, e ainda pelos condes D. Henrique e D. Teresa, se traduziu no reconhecimento de um sistema de governo local alternativo, que não se baseava na interposição de magnates civis, militares ou eclesiásticos entre o monarca e a população; não serão de minimizar as influências das levas de imigrantes que, em direcção inversa, chegavam de além-Pirinéus.

Encontrando-se o alargamento do território e o consequente reforço da linha de fronteira entre as grandes preocupações de D. Afonso Henriques, é indispensável entender a relação dos forais outorgados ou confirmados neste período, a várias localidades da Beira Alta, com a expansão do reino para leste, e de modo idêntico compreender o alcance daqueles que se destinaram a obter o apoio das populações locais na defesa da linha do Mondego e, logo a seguir, no esforço de impelir essa linha mais para sul, até ultrapassar o rio Tejo, assim como, atingido um dos momentos mais emblemáticos com o estabelecimento do domínio sobre as importantes cidades de Lisboa e Santarém, dos pactos estabelecidos com um conjunto de municípios situados numa linha mais avançada da reconquista, que então ligava Monsanto, Abrantes e Coruche, a partir da qual se penetrava até Évora, no coração do Alto Alentejo.

Prosseguindo e intensificando as acções destinadas a concretizar este programa, em que já colaborara decididamente durante o reinado do seu progenitor, D. Sancho I terá concluído que o futuro de Portugal, para lá das campanhas de reconquista, devia assentar no desenvolvimento do território, de tal modo que a preocupação de o incentivar estaria presente na atenção prestada ao Nordeste Transmontano, através do assentamento de famílias e da instalação de aldeias, num espaço que até aí escapava, em grande parte, ao controlo dos governantes portugueses.

D. Afonso II promoveu a organização da Chancelaria Régia, que nos legou os registos e as confirmações da maior parte das cartas de foral anteriormente outorgadas e as primeiras Inquirições, e essa reforma corresponderia ao primeiro passo de um programa de organização administrativa do território, que, por causa da brevidade do seu reinado, se terá ficado por algumas acções isoladas, embora em certos casos destinadas a ter grande repercussão, como a outorga do foral de Contrasta, futura Valença.

As perturbações que ensombraram o tempo de D. Sancho II e a irremediável perda dos documentos da respectiva Chancelaria impedem-nos de fazer um juízo exacto sobre a acção desenvolvida por iniciativa do Rei, designadamente na primeira década do seu reinado, assim como sobre o total alcance da que, nos quinze anos seguintes, foi implementada por várias instituições eclesiásticas e especialmente pelas ordens militares.

No reinado de D. Afonso III foi largamente reconhecido o papel dos municípios no âmbito da organização e do desenvolvimento do território, e os seus procuradores passaram a ter assento nas cortes, onde eram ouvidos sobre os problemas da governação. Com a integração do Algarve, o país adquiriu uma configuração geográfica vizinha da que havia de tornar-se definitiva, embora ainda não estivessem resolvidos todos os problemas fronteiriços. Iremos verificar até que ponto a acção do monarca, além do Algarve, teve por alvo a parte oriental do Alentejo e algumas outra áreas onde era premente a consolidação da linha de fronteira, como a Beira Baixa, o Nordeste Transmontano e o Alto Minho. Se os esforços de modernização administrativa, orientados para a simplificação do sistema fiscal, conduziram à elaboração de numerosas “cartas de renda” ou à introdução de cláusulas a elas equivalentes nos novos forais, deve analisar-se em que medida a preocupação com o desenvolvimento económico não só conduziu ao assentamento de grupos de colonos, com a correspondente criação de aldeias ou de vilares, especialmente na área transmontana, mas também, noutro plano, se traduziu na sistemática fundação de um conjunto de feiras estrategicamente distribuídas, de norte a sul.

Durante o longo e próspero reinado de D. Dinis, Portugal viveu um dos períodos mais dinâmicos, no que se refere à história dos municípios. Em grande parte, a orientação seguida já vinha do reinado anterior e interessa compreender como do tratado de Alcanizes resultou um cuidado especial com os territórios que através dele eram definitivamente integrados em Portugal. As medidas de fomento económico compreenderiam uma série de iniciativas, entre as quais sobressaem as que traduzem uma grande atenção ao espaço que actualmente corresponde ao distrito de Bragança. Neste contexto, não se podem esquecer várias dezenas de feiras criadas por D. Dinis, e a repercussão que elas tinham, em face da respectiva periodicidade, do seu calendário, da sua implantação geográfica e do seu estatuto fiscal. Para além dos forais e de outros documentos fundacionais, que, apesar do elevado número, constituem uma limitada percentagem, os livros da Chancelaria régia contêm uma longa série de registos referentes aos mais diversos actos, que testemunham uma intensa vitalidade, sob múltiplos aspectos, e será esclarecedora uma resenha panorâmica dos problemas que então se punham aos municípios.

O reinado de D. Afonso IV marcou uma viragem na história dos municípios: poucas localidades ascenderam então a essa categoria e os municípios já implantados sofreram as duras consequências da guerra e das epidemias; para além disso, devemos prestar uma especial atenção ao crescente movimento de centralização administrativa, em que se insere a acção dos corregedores e, feita por estes, a nomeação dos vereadores que se encarregarão da governação local, afectando profundamente a autonomia dos concelhos.

Se o curto reinado de D. Pedro I não produziu nada de original, no que aos municípios se refere, exceptuada a campanha de confirmações, cujo registo permite a elaboração de um mapa da cobertura municipal do país nessa época, o de D. Fernando corresponde a um período dramático, que se ficou a dever ao agravamento dos problemas sociais e económicos, motivados e agudizados pela crise demográfica originada pelas epidemias, e se acentuou com a guerra, as frequentes tergiversações do monarca e a subalternização dos concelhos em relação aos poderosos.

        A problemática que se acaba de enunciar constitui o tema dos capítulos que se seguem. Porque em grande parte se trata da síntese de um estudo anteriormente desenvolvido e publicado em Origens dos Municípios Portugueses, engloba-se no primeiro capítulo todo o aro cronológico que vai de meados do século XI até meados do século XIII. A partir daí, cada capítulo versa o período correspondente a um reinado: D. Afonso III, D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro I e D. Fernando.