sábado, 30 de outubro de 2021

3.1 – Entre Douro e Minho

         1. De Guimarães a Constantim.

   

    O Entre Douro e Minho foi a primeira região portuguesa a beneficiar de uma situação relativamente estável após o avanço dos cristãos na direcção do sul, nas últimas décadas do século IX. A fundação de mosteiros e a sua generosa dotação com bens fundiários, de que também beneficiaram as sés episcopais, e a concessão de extensos domínios agrários feita aos nobres que participaram na reconquista, a que se juntou a presúria levada a cabo por iniciativa individual, foram os principais meios de exploração do território, no período que se seguiu. A eles se juntou o arroteamento e a exploração de novas terras, levado a cabo por grupos familiares que se instalaram um pouco por todo o lado. O controle pelo governo central era garantido por uma série de castelos, localizados em sítios estratégicos[1] e confiados a um tenens ou rico-homem, para defender e impor a ordem nas terras a que presidiam. A esta organização sobrepôs-se a eclesiástica, com a restauração das antigas dioceses e a sua reorganização em arcediagados e paróquias[2].

     Quando D. Henrique de Borgonha assumiu o governo do Condado Portucalense, era necessário dar um passo em frente, complementando o desenvolvimento agrícola com a criação de alguns pólos de animação económica, que servissem de base à actividade dos mercadores e artesãos, tendente a incrementar a circulação de mercadorias, a permitir o escoamento dos excedentes agrícolas, a facultar o acesso aos recursos monetários e a difundir novos processos técnicos, como as ferramentas agrícolas e a ferragem dos cavalos. Desse modo os agricultores ultrapassariam as barreiras do autoconsumo e da economia fechada, com a realização de permutas directas e logo a seguir a venda em troca de moeda, utilizada no pagamento de impostos e serviços assim como na aquisição dos mais variados produtos. Por outro lado, assistir-se-ia ao renascer de antigas povoações e ao aparecimento de novos centros urbanos.

     1.1. O quadro europeu.

     A onda de renascimento económico, que atravessava a Europa desde a segunda metade do século X, traduziu-se no gradual aumento da circulação de pessoas e bens, especialmente favorecida pelo aparecimento dos aglomerados habitacionais e mercantis, que então se chamaram burgos[3].

     De área geográfica bastante reduzida, neles se concentrando mercadores e artesãos, surgiram no cruzamento de grandes vias de comunicação, nos arredores de importantes mosteiros, de sedes episcopais ou de fortalezas predominantes.

     Grupos de comerciantes entusiasmados com as perspectivas de lucro foram os agentes deste ressurgimento das actividades artesanais e mercantis. Os mais importantes foram os francos[4] – comerciantes, artesãos, albergueiros – que se instalaram ao longo das principais vias de comunicação, especialmente dos caminhos de peregrinação como os que levavam até Santiago de Compostela[5], na mira de obter lucros com a satisfação das necessidades materiais dos seus concidadãos e de outros peregrinos.

     Não é de esquecer o contributo dos monges, que fundaram ou reformaram alguns dos mais importantes conventos da Península[6], entre os quais vale a pena recordar o de Sahagún, por motivo das referências que lhe encontramos na história da fundação de alguns municípios do norte de Portugal.

     Embora tivessem um papel de relevo em diversas campanhas da reconquista e na colonização de certas áreas, foi sobretudo no espaço urbano que a presença dos burgueses mais se fez sentir, traduzindo-se na multiplicação das actividades mercantis e na afirmação da mentalidade que acompanhava o seu estilo de vida e transmitiria a sua carga semântica a alguns vocábulos que ainda hoje se usam: franquias, burgueses, burguesia, etc. [7].

     A estreiteza do alfoz territorial dos burgos estava em relação com a intensa ocupação do território que já se verificava ao redor, sobretudo no Entre Douro e Minho, e com o facto de as actividades a que os moradores se dedicavam não incluírem a exploração agrícola, carecendo apenas de montados para apascentar as bestas usadas nos transportes.

     Cedo, porém, se descobriu a vantagem de existirem povoações em que a actividade dos moradores se não limitasse exclusivamente ao comércio e aos mesteres, permitindo-lhes que dedicassem uma parte do tempo às ocupações do sector que hoje se designa como primário, agrícolas ou outras, ou que convivessem com pessoas que se dedicavam a tais actividades.

     Assim, além dos burgos, que se caracterizavam pelo facto de os seus habitantes se dedicarem exclusivamente ao comércio ou ao exercício dos mesteres, temos no Entre Douro e Minho, depois alargado ao Entre Minho e Vouga, uma série de póvoas, em que as actividades mercantis são importantes, mas não exclusivas, convivendo com a agricultura ou até com a pesca.

     Esta diferenciação, importante no período inicial, esbater-se-á com o andar dos tempos, pois a maior parte dos pólos económicos tenderão a transformar-se em centros administrativos, integrando no seu alfoz áreas mais ou menos extensas, que constituem a base do aprovisionamento alimentar dos núcleos urbanos.

     Para além dos dois grandes pólos económicos de Guimarães e Constantim, cujo desenvolvimento o Conde D. Henrique procurou incentivar com a outorga dos respectivos forais, o que mais chama a atenção, no Entre Douro e Minho, ao longo do nosso primeiro século, é a criação de pontos de apoio aos que utilizavam a estrada que atravessava a região de norte a sul, de que resultaram os forais de Ponte de Lima (1125), Barcelos [1166-1167], Vila Nova, dita depois Famalicão (1205), e Porto (1123), complementados, em 1217, com o de Contrasta, futura Valença. Guimarães era acessível através da Braga episcopal ou, posteriormente, a partir de Famalicão. Melgaço constitui uma variante na fronteira norte, seguindo o caminho do rio Minho, numa data em que não se estabelecera em bases sólidas o controlo de outros lugares de travessia do mesmo curso de água, especialmente a de Monção e a da já referida Valença.

     O incremento daquele itinerário, cada vez mais seguro, estará relacionado com a decadência da via do interior, que partia duma fronteira que se manteve incerta por mais tempo e estava sujeita, em todo o seu percurso, a pressões senhoriais, mais difíceis de controlar que as de Entre Douro e Minho e responsáveis pelo mais tardio florescimento municipal da linha Alto Tâmega-Corgo e pelo fatal eclipse de Constantim, como veremos, não obstante as menos precoces, e não de todo conseguidas, fundações de Mesão Frio (1152) e Caldas de Aregos (1183).

 

     1.2. As ligações peninsulares.

 

     1.1. Jaca situa-se na margem do longo caminho que, desde o século XI, uniu a França e todo o norte da Península Ibérica[8]. No seu foral, em 1063, apareceu pela primeira vez o termo burgueses a designar os que se dedicavam ao comércio e aos mesteres não agrícolas[9]. O príncipe Sancho Ramirez, futuro rei de Navarra, outorgou essa carta de foro, em que a vila passava a ser designada como cidade e se concediam aos que a povoassem os bons foros que lhe solicitaram, para que fosse bem povoada (concedo et confirmo vobis et omnes qui populaverint in Jaca mea civitate totos illos bonos foros quos michi demandatis, ut mea civitas sit bene populata)[10]. Consagrava-se, desse modo, um conjunto de liberdades, que se repetiriam em muitos outros forais de toda a Península Ibérica:

– o direito de adquirir propriedade e de, em consequência, a possuir “liberam et ingenuam sine ullo malo uso”;

– a prescrição de um ano e dia, importante para a estabilização da propriedade e consequente paz social e desenvolvimento económico;

– o direito a usar das pastagens e florestas dos arredores, tal como os moradores das localidades próximas, até à distância onde num dia se pudesse ir e voltar (isenção do montádigo);

– o direito a não participar na guerra, a não ser para defender o rei, em luta campal ou quando estivesse cercado, até máximo de três dias;

– o direito a apresentar fiança, em vez de ser preso, antes de ser julgado;

– a despenalização do homicídio, em relação aos moradores, em caso de um homicídio cuja vítima fosse autor de furto;

– a despenalização do rouso, quando se registasse o assentimento da vítima ou esta não reclamasse no prazo de três dias;

– a fixação das coimas a pagar em relação aos principais delitos;

– o direito a ser julgado apenas pela justiça local.

     O foro de Jaca expandir-se-ia pelo reino de Navarra, sendo concedido a Estela, em 1090, onde evoluiria, tornando-se modelo de outros em Navarra e na Guipúzcoa; em 1129, foi outorgado aos francos do bairro de S. Saturnino, em Pamplona[11].

     Sob a influência do foral de Jaca, apareceram os forais da área da Rioja (a Rioja até 1076 fez parte de Navarra e a partir daí foi integrada em Castela, embora esporadicamente chegasse depender de Navarra, como território enfeudado). De todos, pela excepcional difusão que viria a ter, especialmente em terras de Navarra e Alava, é digno de especial atenção o foral de Logroño[12], concedido por D. Afonso VI, em 1095, cuja outorga, no dizer de Rafael Gibert, “representa la introducción en Castilla del fuero de francos, aunque cronologicamente es anterior el reconocimiento del mismo a los pobladores de Toledo en 1085”[13].

     No preâmbulo do respectivo dispositivo registava-se que a população de Logroño era constituída tanto por francos como por hispânicos e outras gentes: “(...) decrevimus eis dare fuero et legem, in quo homines qui in modo presenti in supradictum locum populant, vel deinceps usque in finem mundi Deo juvante populaverint, tam francigenis, quam etiam ispanis, vel ex quibuscumque gentibus vivere debeant ad foro de Francos.”[14]

     A influência do foral de Logroño estendeu-se a mais de sete dezenas de povoações, distribuídas por Navarra, Leão e Castela, e alargar-se-ia também a Portugal.

     Vindo da França, onde o fenómeno já conhecera um incremento substancial, o conde D. Henrique da Borgonha e os homens da sua chancelaria deviam, com efeito, conhecer este texto, que, de entre todos os do género, era o que gozava de maior popularidade, e, além de possuir bens e de ter contactos no centro da península[15], estacionou na corte de D. Afonso VI de Castela, onde se encontraria na altura da outorga do foral de Logroño. 

 

           1. 3. A prioridade de Guimarães. 

 

          Entre as primeiras medidas adoptadas pelo seu governo, D. Henrique incluiu a consolidação ou a criação de dois “burgos”, correspondentes a outras tantas áreas do condado portucalense: Guimarães e Constantim.

     Outorgado em data que não ficou exarada no documento, o foral de Guimarães deve colocar-se no ano de 1096 e viria a ser confirmado e ampliado por D. Afonso Henriques, a 27 de Abril de 1128[16].

     Precede, como veremos, o de Constantim, que é de 1096, mas não pode ser anterior a esse ano, em que o Conde D. Henrique tomou a seu cargo os destinos do condado portucalense. Atendendo à grande importância de Guimarães, que se tornou, de algum modo, a cidade condal, onde D. Henrique terá estabelecido a morada da jovem esposa, e, portanto, a sua residência oficial, e já tinha alcançado uma significativa expressão no plano religioso, militar e económico, é compreensível que o seu foral fosse outorgado antes de qualquer outro.

     1.3.1. Ao preparar a outorga de um foral que, correspondendo aos seus interesses, estimulasse a fixação na cidade condal dos burgueses, comerciantes e mesteirais, cuja presença dinamizava a economia, favorecia a aquisição de moeda e desencadeava os primeiros ventos da prosperidade, encontrou o modelo mais adequado para lhe servir de referência no foral de Logroño, outorgado pouco antes mas, como referimos, prestes a adquirir uma prolífica descendência.

     O foral de Guimarães não o reproduz, pelo menos à letra, e omite uma grande parte das suas cláusulas, mas não as disposições respeitantes a matérias fundamentais, num articulado mais sintético.

     Encontramos em comum nos dois diplomas:

    O pagamento de um tributo anual único, pela casa: 2 soldos em Logroño, 12 dinheiros em Guimarães (o equivalente, por conseguinte)[17];

     A protecção aos moradores contra os abusos da autoridade policial, proibindo o saião de entrar nas casas para fazer penhoras, substituindo este procedimento pela exigência de fiança e subsequente apresentação da causa ao juiz, e despenalizando o homicídio do saião se ele desobedecesse a esta norma. Evitava-se, desse modo, que os abusos da autoridade perturbassem o normal desenrolar da actividade económica, como sucederia com a realização indiscriminada de penhoras aos comerciantes ou até a sua mera expectativa;

    – Na mesma linha se integrava a fixação taxativa das multas a pagar pelas várias infracções, não se referindo, porém, as penas aplicáveis às “coimas” ou crimes maiores – homicídio (a não ser o do saião), rouso, furto – às quais normalmente se aplicava a lei geral;

     Aos moradores, além da referida inviolabilidade do domicílio, era garantido o direito de comprar e vender livremente quaisquer bens, em suma, o direito de propriedade;

     Enquanto o foral de Logroño isentava os moradores de participar na guerra, no de Guimarães, medidas como a limitação a bem pouco da obrigação de responder ao apelido são de entender dentro do mesmo espírito: destinavam-se a evitar as ausências, incompatíveis com o bom andamento dos negócios, a não ser em circunstâncias que corresponderiam à autodefesa, quando o inimigo estivesse próximo;

     A isenção de montádigo, fora do termo, justificada pela necessidade de alimentar as bestas de carga, em viagem, ou num burgo, aglomerado habitacional praticamente desprovido de termo agrário[18] e, por conseguinte, também de montados, não tinha paralelo no foral de Logroño, embora já aparecesse no de Jaca;

     Afastando-se dos seus paradigmas, o foral de Guimarães incluiu uma tabela de portagens, relativa aos animais, às cargas de tecidos e às peles, que, todavia, apenas se aplicava às transacções superiores a doze dinheiros;

     Excluíam-se os factores de diferenciação social, evitando os elementos que contribuíssem para alterar o equilíbrio interno da comunidade, precavendo designadamente a realização de actos de prepotência: por regra, era proibida a permanência de militares (cavaleiros), beneficiários de estatuto privilegiado: “nullo cavallario non habeat pausada in Vimaranes nisi tantum per amorem domini sui”.

     No foral de Guimarães, ao contrário do seu paradigma, encontramos algumas informações sobre a orgânica do município:

     O concelho é o garante do direito e da consequente paz social («qui vendiderit aut comparaverit nullo aver in Vimaranes ante illo concilio habeat illum liber et nemo sit ausus postea qui illum requirat per male”);

     O juiz é escolhido entre os membros deste concelho – “judicem qui erectum fuerit de concilio” – e compete-lhe julgar as “calumpnias”, coimas ou delitos cometidos pelos burgueses e denunciados pelo saião, infligindo-lhes as sanções correspondentes;

     O saião aplica as multas e aceita fiadores pelas “calumpnias” ou infracções cometidas pelos burgueses, enquanto aguardam o julgamento, sendo-lhe, por regra, proibido fazer penhoras, a não ser aos fiadores, naturalmente quando estes não satisfizessem os compromissos.

     1.3.2. Em 27 de Abril de 1128, D. Afonso Henriques não só confirmou este foral como também o ampliou com a concessão de um mais amplo leque de privilégios aos vimaranenses.

     Ainda não se tinha travado, nessa data, a batalha de S. Mamede[19], mas estavam em curso os acontecimentos que opuseram D. Teresa e o seu filho, ou os partidos que se colocavam sob a sua égide, e que levaram o jovem Afonso a assumir as rédeas do governo.

     Mais do que a confirmação do foral anterior, a ampliação do foral com o reconhecimento de novos direitos era o meio não só de agradecer o apoio recebido – proinde quod vos fecistis honorem et cabum super me et fecistis mihi servitium bonum et fidele (deste-me honra e apoiastes-me, prestastes-me bom e fiel serviço) – mas também e sobretudo de garantir a continuação desse mesmo apoio, que, da parte dos burgueses, deverá ter consistido fundamentalmente no financiamento da campanha, especialmente com a disponibilização de meios para a aquisição de armas e de cavalos. Necessita de ser revisto o que está escrito acerca dos acontecimentos de 1128, considerando-os como uma obra dos “barões portucalenses” (entenda-se nobres), quando de facto também foi importante e talvez imprescindível o contributo dos burgueses.

     A contrapartida imediata oferecida aos burgueses de Guimarães, correspondendo aos seus interesses económicos, foi a isenção do pagamento de portagens em todos os lugares do reino, acrescida da protecção incondicional aos seus haveres, com a consequente proibição de os reter e a concessão das respectivas imunidades e isenções fiscais, em qualquer lugar onde, móveis ou imóveis, os mesmos haveres se encontrassem.

     A prosperidade dos burgueses seria tanto maior quanto mais numerosa fosse a clientela, e, por conseguinte, apenas tinha a beneficiar com o crescimento da população urbana. Nesse sentido se entende o alargamento dos privilégios outorgados pelo foral a todos os que viessem habitar na povoação, incluindo a concessão do estatuto de “ingénuo” ou homem livre aos “juniores” (os “escravos da gleba”, na terminologia estrangeira, ou “malados” na linguagem de outros documentos portugueses). Na mesma linha é de entender a concessão do direito de asilo em benefício dos réus de crimes mais graves, homicídio e rouso, que se acolhessem ao burgo, desde que, uma vez aí residentes, não reincidissem nos mesmos delitos.

     O facto de Guimarães se ter transformado em residência condal e, mais ainda, de, em consequência, se tornar a sede da administração pública, mas também o “pivot” das operações guerreiras, contribuiu para que a esta cidade acorressem militares, designadamente cavaleiros e vassalos de infanções. Esta situação rompia o monolitismo social característico dos burgos e abria a porta a futuros conflitos no seio da comunidade. Tal perspectiva não afligia então os burguese vimaranenses, cujo grupo devia sentir-se suficientemente poderoso para menosprezar esse risco, olhando a abertura como uma promessa de lucros acrescidos, com a diversificação, em número e em recursos económicos, da sua clientela. Assim se compreende que os burgueses de 1128 encarassem sem reticências a abolição da cláusula de 1096 que, aparte uma pequena reserva («a não ser por amor do seu senhor”), determinava peremptoriamente “nenhum cavaleiro tenha pousada em Guimarães”. Os cavaleiros e vassalos de infanções não só passavam a ter a liberdade de morar em Guimarães, mas até eram estimulados a fazê-lo, com a isenção da fossadeira e a protecção concedida aos seus haveres.

     1.3.3. Em 1252 D. Afonso III confirmou genericamente o foral de Guimarães, acrescentando-lhe a liberdade de comprar e vender nos "açougues” pertencentes ao concelho[20]. Dois anos depois confirmava aos moradores a sua isenção de trabalharem na obra dos muros do castelo[21].

     Possivelmente esta dicotomia entre os homens do burgo e os da fortaleza estará na origem do aparecimento do novo concelho do castelo de Guimarães. Em 1258, El-Rei criava uma feira, com a duração de quatro dias, que devia realizar-se quatro vezes por ano[22], cujos participantes estavam sujeitos ao pagamento de portagens, e devia ter lugar dentro do castelo, “desde uma porta até à outra”. Nos quatro dias em que durava não eram permitidas outras vendas na vila de Guimarães, a não ser na feira, exceptuado o vinho das cubas da vila, “mas não seja vendido vinho de trebolhas nem de carreto”. A confirmação da alforria concedida aos habitantes do castelo surgiria em 1267, no termo de uma inquirição que o Rei mandou fazer sobre os seus termos, e sobre os usos e costumes dos homens que nele viviam: os moradores do castelo elegeriam os seus alcaldes e andador e estariam isentos da justiça do concelho de Guimarães[23].

     Só em 1369, no reinado de D. Fernando, os homens do castelo seriam de novo colocados sob a jurisdição do concelho de Guimarães, no mesmo documento em que a este eram dadas por termo “as terras de Vermui e de Felgueyras e de Freytas que som acerqua da dicta villa”[24]. O concelho de Guimarães, com efeito, enviara uma exposição ao Rei em que se dizia que, na altura em que Henrique II cercara a vila, os moradores desta tiveram o encargo de defender o castelo, pelo que solicitavam que acabasse a feira que dentro dele se realizava e se tornassem um só povo. No entanto, pelo que lhes dizia respeito, em 1370, os moradores do castelo reclamaram desta medida[25], porque, devido a tal anexação, o concelho de Guimarães fazia os moradores da vila do castelo pagar sisa, fintas e talhas, e conduzir presos, e lhes impunha outros encargos, de que antes estavam isentos, o que lhes causava grandes danos e fazia com que a referida vila do castelo se despovoasse. El-Rei adoptou uma solução intermédia, segundo a qual continuariam a ser um só povo (um só município), mas, quando houvessem de eleger os juízes, um deles seria da vila do castelo e o outro da vila de fora do castelo, e ”outrossy quando ouverem de fazer seus vereadores que huum dos vereadores seia de cima da villa do castello e os outros da villa de fora do castello e mando que daqui endiante em cada hūa domaa façam andar esses juízes ambos huum dia da domãa dentro na villa do castello so o alpender da sancta margarida”. Nas outras coisas, aos moradores da vila do castelo deviam ser respeitados todos os privilégios, graças e mercês que anteriormente lhes tinham sido concedidos. No entanto, o concelho de Guimarães deve ter exorbitado na execução da ordem régia, designadamente em relação à actividade dos comerciantes de géneros alimentares e à realização da feira do castelo, o que evidenciou a necessidade de esclarecer alguns pormenores, como viria a acontecer, em nova carta, em Julho de 1372[26], na qual o Rei determinava “que todolos carniceyros e padeiras e peixeiros que na dicta villa dentro morarem conthinuadamente e no termo della que talhem e vendam todallas cousas que a seus mesteres pertençam que de vender ouverem dentro na dicta villa e nom em outro lugar. Outrossy mandamos que se faça feyra na dicta villa quatro vezes no anno pella guisa que he contheudao nos privillegios que a dicta villa dos reis que ante nos forom e de nos teem. E mandamos que nemhuum nom lhe vaa contra esto nem constranga os dictos carniceyros paadeyras e peixeiros que em outro lugar talhem nem vendam as dictas cousas salvo no dicto logo do castello”.

     1.3.4. Com a anexação de Vermoim, Felgueiras e Freitas, determinada em 1369, Guimarães deixava de ser um burgo, no sentido clássico, para se tornar um município de amplo alfoz territorial. No entanto, algum tempo depois, El-Rei, reincidindo nas tergiversações que caracterizaram o seu reinado, fez uma doação de Vermoim a Telo Gonçalves, com toda a jurisdição cível incluída, o que forçou o concelho de Guimarães a mais uma intervenção, que o monarca atendeu, em 1373: “demos a dicta terra de Vermoy a tello gonçallvez e que lhe demos a jurdiçam civel polla qual razam diziades que perdiades da dicta terra de Vermoy a ajuda que hi soyades d aver pera guardar e vellar e defender com vosco essa villa e pagar com vosco nas cousas que vos eram compridoiras. E pediades nos por mercee que vos restetuisemos a jurdiçam civel como vos ja per nos fora dada ante que a nos desemos ao dicto tello gonçallvez. E nos veendo o que nos pedir enviastes querendo vos fazer graça e mercee outorgamos vo lla como nos per vos foe pedido. Porem vos mandamos que husedes e costumedes com elles em a dicta jurdiçaom como husavades e acustumavades em no tempo que vos per nos foe dada” [27].

     1.3.5. Se o foral de Guimarães, em princípio, vedava a permanência de cavaleiros dentro do burgo e essa proibição foi levantada na confirmação outorgada por D. Afonso Henriques, nada porém concedia aos nobres o direito de exigir pousada gratuita aos moradores e muito menos por tempos alongados, como sucedia nessa época de confusão, que caracterizou o reinado de D. Fernando, conforme o eco transmitido por um registo de 1376[28]: “o concelho e homens boons dessa villa nos enviarom dizer que elles ham foro per o primeiro rey que ouve em portugal e confirmado per os reis que depois forom e per nos no qual dizem que he contheudo que nehuum fidalgo nom pouse na dicta villa contra vontade do senhor da casa o qual foro sempre fora guardado ataa ora e que nos davamos cartas a castellaãos gram peça dellas que lhes dem na dicta villa pousadas e camas e palhas e lenhas sem dinheiros e que ha hi taães que pousam na dicta villa per spaaço de huum anno e mais”! El-Rei não se podia furtar a pôr cobro a tão grande abuso, ainda que, com demasiada tolerância: “os dictos fidalgos possam morar em essa villa VIII dias quando hi vierem pera endereçarem alguas cousas que lhes comprirem e em estes VIII dias mandamos que lhes dedes casas em que pousem e camas sem dinheiros e que as outras cousas lhes dedes e aiam por seus dinheiros e acabados esses VIII dias mandamos vos que todas essas cousas lhes dedes por seus dinheiros”.

     1.4.  Constantim.

     O foral outorgado a Guimarães em 1096 serviu de modelo a diplomas idênticos concedidos a outras povoações do antigo Condado Portucalense, das quais a primeira, situada para lá da área que se costuma englobar no Minho, foi a de Constantim.

     1.4.1. Alexandre Herculano, baseando-se numa cláusula do foral de Constantim, cuja data é de 1096, considerou mais antigo o de Guimarães (PMH-LC, p. 350). Mas, como observou Alfredo Pimenta, essa passagem (“Et concilii de Constantim semper teneant hanc cartam de Gimaranes”) não se encontra no texto do primitivo foral, mas está acrescentada a seguir à confirmação feita por D. Afonso Henriques, o que lhe retira o valor probatório que poderia ter para o estabelecimento da cronologia da carta inicial[29].

     O foral de Constantim é, no entanto, posterior ao de Guimarães, não só porque carecem de consistência os argumentos utilizados para defender a sua prioridade cronológica e genealógica, mas sobretudo porque certas passagens nele existentes deveriam ter sido incluídas no de Guimarães, se este lhe fosse posterior e o utilizasse como modelo.

     Em primeiro lugar, advirta-se que a cláusula relativa ao apelido, que limita a sua obrigatoriedade à possibilidade de voltar a casa no mesmo dia, o que levou alguns estudiosos a atribuir a prioridade cronológica ao foral de Constantim “por ser localidade mais vizinha de terra de mouros”, é um argumento demasiado fácil e irrealista, pois de qualquer modo os guerreiros de Constantim, para virem dormir a casa, não poderiam avançar até muito longe. Meio século depois, as mesmas palavras apareceriam sem qualquer alteração no foral de Mesão Frio, de 1152, em circunstâncias históricas bem diversas, pois os mouros já estavam muito longe. Essa determinação, que se repete em documentos de outras terras, deve entender-se no sentido de que os moradores apenas seriam obrigados a ir em apelido quando a sua própria segurança se pudesse considerar ameaçada.

      Comparando o texto dos dois forais, deduz-se que houve a preocupação de dotar algumas cláusulas de maior precisão ou clareza no foral de Constantim:

– uma das disposições deste documento, relativa ao "rouso", só em 1128 entrará na confirmação do de Guimarães, que, a ter copiado o de Constantim, já a deveria ter incluído no núcleo inicial;

outra cláusula, com matéria de tão grande importância que, se o foral de Constantim fosse o paradigma, não poderia deixar de ser reproduzida, é a que exige a existência de queixoso ou “rancuroso” para obrigar um cidadão a responder perante o juiz, e a comprovação, com o testemunho dos homens-bons, dos factos que são objecto da queixa («cherimonia”)[30].

outro pormenor, em que o foral de Constantim não tem correspondência no foral de Guimarães, acha-se na cláusula relativa ao assassínio do saião, ocorrida por causa da sua entrada em casa de um burguês: depois de estabelecer, como o de Guimarães, “si occisus fuerit per occasionem CCC.os solidos dabitur pro eo”, o de Constantim acrescenta: “Et si alius homo ibi occisus fuerit tali pacto componatur et nichil aliud”;

enquanto o foral de Guimarães se satisfazia com a imprecação genérica, a preceder a subscrição final, o de Constantim ajunta-lhe uma cláusula a cominar uma pena de quinhentos soldos, além da restituição a dobrar, a quem tomasse os haveres dos burgueses;

finalmente, não se esqueça a existência, em Constantim, de uma disposição relativa ao padroado da igreja, que encontrará paralelo em outros forais posteriores da área de Trás-os-Montes.

     1.4.2. Constantim situava-se no cruzamento de importantes vias que ligavam o norte e o sul, o litoral e o interior do Condado Portucalense. A via do interior seria ainda, como no decurso dos séculos X e XI, a mais importante ligação entre o norte e o sul, por causa da maior exposição do litoral aos assaltos dos normandos e sarracenos. Nos primeiros tempos da nacionalidade seria também a preferida dos almocreves e comerciantes, por se encontrar menos dependente das travessias em terras senhoriais, onde seria forçoso pagar portagens de custos imprevisíveis, como acontecia mais a poente, onde se instalaram importantes domínios, tanto laicos, das grandes famílias nobres, como eclesiásticos, à volta das cidades episcopais.

     Desde meados do século XII e até às últimas décadas do século XIII, Constantim tornar-se-ia o centro da terra de Panóias, sob o ponto de vista económico, especialmente por causa da feira que aí se realizava, e sob o ponto de vista administrativo, por terem de acudir ao juiz de Panóias, nos casos de maior importância, as aldeias e os pequenos municípios localizados à sua volta.

     A importância de Constantim foi acentuada com a actividade metalúrgica – nas vertentes extractiva e oficinal – que se desenvolveu ao redor[31]. O ferro, já importante, pela sua utilização no fabrico de utensílios para uso dos lavradores e artesãos, especialmente dos pedreiros, revelou-se fundamental nesta época, especialmente para a confecção das ferraduras com que se começaram a calçar os cavalos, contribuindo para o êxito das mais longas campanhas militares e das viagens dos almocreves. Os ferreiros e os ferradores tornaram-se um grupo activo e imprescindível nas povoações que se situavam ao longo das vias de comunicação. A actividade dos ferreiros e a existência de armas ou de utensílios de ferro é mencionada em vários forais ao longo do século XII (por exemplo, Sernancelhe, 1124; Seia, 1136; Lourinhã, 1185; Melgaço, a. 1185; ) e, de um modo especial, nas Posturas coimbrãs de 1145. Ao longo do século XIII, os exemplos multiplicam-se. Mas é na carta de foro de Ermelo e Bilhó[32] que pela primeira vez se antevê a existência de uma actividade extractiva, pois só desse modo se compreende que cada casal devesse pagar seis ferros de tributo em cada ano: “detis similiter de unoquoque casali sex ferros”. Ermelo confronta, aliás, com S. Pedro de Vilar de Ferreiros, onde a origem deste topónimo fica esclarecida com a existências de “ferrarias que sunt regis”[33]. À recolha ou extracção do metal, seguia-se o respectivo trabalho de confecção e os moradores eram também obrigados a fornecer, ao que parece, uma fechadura: “debetis dare unam saraginem”. Dez anos depois, segundo a respectiva carta de foro[34], os moradores de Andrães deviam pagar “I morabitinum pro ferros de fogo et pro totas portagines”. Tardiamente, as Inquirições de D. Afonso III, dão-nos conta da existência desta actividade em várias freguesias da terra de Panóias:

– em Vila Marim: vários casais davam “ferro de fogo”, “ferros de fogo”, “ferros”, “ferro”; aliás, diz um dos inquiridos, “de toda Vila Marim soiiam a dar ferros de fogo”[35];

– em Mateus: um, dois ou três casais (os depoimentos não são uniformes) davam “segnos ferros de fogo”; havia aliás oito casais “nas ferrarias hu chamam o Boval”, que um nobre extorquiu aos povoadores de Bilhó e Ermelo[36];

– em Mouçós: a casaria do Pereito sobre Pena de Amigo “soiia a dar ferro de fogo”; três casais de Soveroso “ora dão ferros de fogo”; do mesmo modo, um casal de Vila Nova dava ferro de fogo[37];

– em Constantim: o casal da Soeira, na vila de Louredo, dava ferros de fogo; as vilas de Escariz e Paredes “soíam dar ferros de fogo”; três casais que a igreja de Vila Nova tinha em Louredo deviam dar “senhos ferros de fogo”; Muraes e Arranães (deverá ler-se Muçães e Andrães?) “soiiam a dar a elRei ferros de fogo”[38];

– em S. Martinho da Anta: dum casal, que era pousa do mordomo, “davan lhi vida e ferro de fogo”[39].

     1.4.3. Este incremento da actividade metalúrgica vinha de longe, pois, em quase todos os casos citados, se tratava de tributos que eram devidos ao Rei, mas que desde há muito tinham deixado de ser pagos, por causa dos privilegiados que indevidamente se tinham assenhoreado das propriedades. Aliás, terá sido a prosperidade inicial, baseada na riqueza agrícola das terras situadas ao redor, na única feira existente durante quase dois séculos, em Trás-os-Montes, e na actividade metalúrgica, a um nível não detectado noutras localidades do reino, que tornou Constantim uma área cobiçada pelos poderosos, especialmente pelos nobres e pelos mosteiros, de tal modo que o espaço se tornou insuficiente para que as instituições municipais florescessem e continuassem a estender a sua influência sobre o território circundante.

     As Inquirições ordenadas por D. Afonso III apresentam-nos um panorama sombrio do julgado de Panóias[40]. Quando Constantim foi povoada, El-Rei dera-lhes apenas o lugar que na altura das Inquirições se chamava a Trapa, mas os moradores resolveram apoderar-se das herdades reguengas que rodeavam a vila e parti-las entre si, sem qualquer autorização e sem ficarem a pagar qualquer foro ao Rei[41]. D. Sancho II decidiu criar uma nova póvoa no lugar da Ponte, masos próprios alcaides (sic, por alcaldes?)  açambarcaram a herdade reguenga e partiram-na entre si, deixando de pagar qualquer renda ou tributo![42]. O mesmo fizeram à herdade de Rualde, que venderam a terceiros[43]. Um cavaleiro, Gonçalo Nunes, matou o juiz Gonçalinho de Panóias, porque este demandava os direitos de El-Rei sobre uma herdade[44]. Por causa destes abusos, e com medo das prepotências dos grandes, tornou-se erma a póvoa da Ponte[45] e um dos inquiridos chega a dizer que “sabe que todo o regeengo de terra de Panóias seeria pobrado se nom fosse com medo dos cavaleiros, mais non o ousam a pobrar”[46]. Esta situação com que os inquiridores depararam em Constantim e ao seu redor está certamente na origem da decisão que, depois de ouvir o seu conselho, D. Afonso III tomou de criar a nova povoação de Vila Real, assim como na de D. Dinis que a transformou no centro administrativo da terra de Panóias, em substituição da decadente Constantim[47].

     1.5. Outras outorgas.

     Meio século depois, o articulado do foral de Guimarães serviu de paradigma ao de Mesão Frio, datado de Fevereiro de 1152[48]. Mesão Frio ocupava um ponto estratégico, próximo de uma importante travessia do rio Douro. Sublinha a sua importância no contexto económico do país o facto de ter sido dotado em 1298 com uma das vinte e duas feiras anuais criadas no tempo de D. Dinis[49]; tinha esta a duração de quinze dias e começava em 10 de Julho.

     A Chancelaria de D. Afonso Henriques seguiria de perto o mesmo formulário no foral outorgado, em 1183, a Caldas de Aregos[50], na outra margem do rio Douro[51].

    Também para a redacção de outros forais, que não se enquadram na categoria dos burgos, em sentido estrito, independentemente da respectiva família ou grupo, servirão de referência algumas passagens do foral de Guimarães, especialmente na elaboração da tabela de portagens e do elenco das coimas que penalizavam as várias infracções e delitos.

     Numa época mais tardia, o foral de Guimarães viria ainda a servir de referência ao que foi concedido a Ribeira de Pena, em 1331[52].

 

       2. O caminho do desenvolvimento.

   

A carta de foro outorgada ao burgo situado nos arredores do mosteiro de Sahagún tornou-se a remota referência do foral de Melgaço (c. 1185), neste caso tendo como intermédio o de Ribadávia (e este o de Allariz), e do do Porto (1123), outorgado pelo Bispo D. Hugo. Por seu lado, o do Porto daria origem aos de Cedofeita (1237) e de Vila Nova de Gaia (1255). Do foral do Porto e daqueles que estão com ele relacionados trataremos expressamente no capítulo seguinte.

       2.1. Melgaço: sentinela avançada.

     2.1. Melgaço é de todos os municípios portugueses o que se situa mais a norte e mais profundamente penetra na Galiza. Não são muito claras as circunstâncias históricas em que foi outorgado o seu antigo foral. É, porém, evidente que existiu um processo negocial e os hiatos verificados no decorrer do mesmo serão até responsáveis por que a datação ficasse ambígua [1183-1185].

     2.1.1. Alguns documentos do antigo Cartulário de Fiães[53] dão conta do movimento que acompanhou a erecção do município[54]. Em 30 de Junho de 1185, os juízes e o concelho de Melgaço fizeram um acordo com o Abade do mosteiro de Fiães sobre a construção da nova igreja paroquial [55]. No entanto, o projecto de construção da igreja não foi avante, talvez pela incapacidade do mosteiro, já posta em dúvida num dos documentos anteriores: “sit facta ecclesia ab abbate et conventu si tamen potuerint”. Em Abril de 1187, fazia-se um novo acordo, desta vez entre “omnes homines de Melgazo tam viri quam mulieres” e o arcediago Garcia, em que ambas as partes se comprometiam a ajudar-se mutuamente na edificação do templo “tali pacto ut facias illam et edifices nobiscum te adiuvantibus et de necessarii ecclesie tibi ministrantibus donec sit perfectam et consumatam”[56]. Dali a cinco anos o templo estava concluído, conforme consta de um acordo, de Abril de 1205, entre o arcediago e o abade de Fiães, sobre o serviço na igreja de Melgaço, o qual é assinado, em representação do concelho, pelos juízes Paio Garcia e João Rodrigues[57].

     2.1.2. As negociações relativas ao foral decorreriam sob as ordens de D. Sancho I, associado à governação nos últimos anos da vida de seu pai, D. Afonso Henriques[58].O povoador estaria já a preparar as acções militares que planeara para os primeiros anos do seu reinado na fronteira do Minho, se não para a estender, pelo menos para a consolidar, e interessar-lhe-ia garantir o apoio do activo grupo de migrantes que, descendo pelas margens do rio, avançara mais para ocidente que outros, nos caminhos que prolongavam a estrada que atravessava o norte da Península e veio a ser conhecida pelo nome de estrada de Santiago.

     O modelo que os moradores propuseram ao monarca foi o de Ribadávia, povoação que se localizava nesse caminho. A carta de foro desta localidade foi outorgada em 1164 e reproduzia a que tinha sido concedida a Allariz e iria ainda ser comunicada a outros lugares. A sua mais remota referência é o já mencionado foral de Sahagún[59].

     Sahagún situa-se a uns 70 km. de Leão, num lugar onde existira uma antiga ermida dedicada aos mártires S. Facundo (=San Hagún) e S. Primitivo, destruída pelos invasores muçulmanos e reconstruída logo após o início da reconquista. Junto dela, Afonso III encarregou um monge fugido de Córdova de construir um mosteiro e um hospital para os peregrinos. Com este rei, Sahagún transformou-se no mais importante centro religioso de Leão, sendo através do seu mosteiro que as reformas litúrgicas de Cluny iniciaram a sua expansão no reino.

     O monarca favoreceu o mosteiro com doações e protegeu a instalação de um aglomerado urbano onde “se ajuntaram de todas as partes do universo burgueses de muitos e variados ofícios, a saber, ferreiros, carpinteiros, alfaiates, peliteiros, sapateiros, escudeiros e homens instruídos em muitas e diversas artes e ofícios, e outrossim pessoas de diversas e estranhas províncias e reinos, como gascões, bretões, alemães, ingleses, borgonhões, normandos, tolosanos, lombardos e muitos outros comerciantes de diversas e estranhas línguas”[60].

     O mais antigo foral de Sahagún foi outorgado em 1085 por Afonso VI, a rogo do abade Bernardo, para fomentar, ou, talvez antes, para disciplinar essa instalação dos moradores à volta do mosteiro[61]. A carta é constituída por vinte e nove disposições, na sua maior parte sem qualquer ordem, que apenas existe em relação a alguns articulados, como sucede nos preceitos 4.º a 8.º, relativos à ocupação do solo, e 18.º a 25.º, relativos ao homicídio e às ofensas corporais. Algumas cláusulas eram bastante gravosas para os moradores, o que suscitou, mais do que uma vez, o seu levantamento contra os monges. Por isso, algumas alterações foram gradualmente introduzidas: em 1096 foi abolida a proibição de os moradores terem fornos em suas casas, embora se mantivesse a de vender os géneros alimentares e a lenha no mercado sem que os monges manifestassem antes a sua vontade de os comprar ou não, assim como a de vender o vinho enquanto os monges não tivessem vendido o seu[62]; em 1110, foram suprimidos os encargos do núncio e da maneria ou maninhádego e regulamentada a ordem de suceder nas heranças[63].

     Afonso VII, em 1152, para ultrapassar as divergências entre os burgueses e o abade, concedeu aos primeiros uma nova “carta de foros quam eidem abbati suisque monachis requirebant”[64]. Os preceitos desta carta[65], embora em número estejam próximos dos anteriores, só em parte recolhem, mantendo-os ou alterando-os, os do foral primitivo.

     Finalmente, em 1255, para terminar com as discórdias entre o concelho e o mosteiro, Afonso X acordou com o abade D. Nicolás a outorga de uma nova carta destinada a “emendar los fueros que avien también del rey Don Alfonso abuelo del emperador, cuemo los otros, que les diera después el emperador en uno con el abad, et com el convento, et de les dar fuero”[66]. O novo foral começa, de facto, por recolher parte das disposições de 1152, quase todas à letra, embora nalguns casos adopte princípios e disposições constantes do de 1085. De seguida, ocupa-se a descrever a constituição do concelho, os seus funcionários e respectivas obrigações, assim como a organização do mosteiro, com indicações precisas em relação aos seus excusados e apaniguados; aclara as relações entre o concelho e o mosteiro e delimita a esfera de acção de cada uma das instituições. Outras disposições referem-se às ordenanças municipais e, a terminar, regula-se a situação dos judeus dentro da vila. Como supletório, o Rei determina que se utilize o Fuero Real.

     Mais do que a importância de que Sahagún desfrutou, como lugar religioso, no reino de Leão, terá sido a vitalidade experimentada pelo burgo que se desenvolveu nas proximidades do mosteiro e as deslocações ou até a migração de alguns dos seus habitantes para outras localidades que justificaram a adopção do foral de Sahagún por diversas comunidades, desde Santander e Oviedo até Madrid, Porto e Melgaço. Os forais mais antigos seguiram o de 1085, enquanto que os que foram outorgados depois de 1152 tomaram o desta data como modelo.

     Devem ter sido os burgueses de Allariz que manifestaram a Afonso VII a sua preferência pelo modelo sahaguntino, tal como os moradores de Ribadávia se interessarão pelo de Allariz e os de Melgaço pelo de Ribadávia. Convém não esquecer que Ribadávia e Melgaço se situam nas margens do rio Minho, a uma distância relativamente próxima, e estavam ligadas por um caminho que, estabelecidas as proporções, era mais frequentado nessa época do que nos tempos actuais. Ainda no tempo de D. Pedro I, em 1361, Melgaço é referida, numa carta régia, como uma das principais entradas de mercadorias vindas da Galiza no reino de Portugal[67].

     Sendo Melgaço uma povoação fronteiriça, foram sempre múltiplos os seus contactos com a Galiza, o que se traduziu em vários aspectos da história local: se Santa Maria da Porta, actual orago de Melgaço, que nos lembra as grandes festas de Santa Maria do Portal, de Ribadávia, pode não a ter na sua origem, São Facundo ou Fagundo, o santo que deu o nome a Sahagún, era o padroeiro de uma das igrejas medievais da nossa vila raiana[68]. É natural que entre os povoadores de Melgaço se contassem agricultores e comerciantes provenientes de Ribadávia.

     2.1.3. Entre os destinatários do foral outorgado, em Agosto de 1185, ou pouco antes, a Melgaço, designados simplesmente como moradores ou vizinhos, distinguem-se os mercadores. Nada se pormenoriza sobre o respectivo estatuto social, mas supõe-se que é uniforme, fundamentalmente o mesmo dos “burgueses” ou habitantes das povoações noutros documentos designadas como “burgos”.

     Aparentemente, o foral nada tem a ver com o de Ribadávia, pois as matérias foram objecto de uma exposição e de uma redacção totalmente diferente, mas o mesmo não se dirá em relação aos conteúdos, que são, em grande parte, semelhantes, como se pode verificar no mapa comparativo que anexamos ao já referido estudo[69].

     Fixa-se um imposto geral único, de 1 soldo, ou 12 dinheiros, a pagar por cada casa, como nos forais dos outros burgos portugueses e no de Ribadávia, a que se ajunta a taxa de dois soldos a pagar pelos carniceiros, que também onerava os de Ribadávia. Os vizinhos de Melgaço são ainda onerados com o pagamento de 6 soldos, de colecta, uma vez por ano, no máximo, quando o rei se deslocar à sua vila, tributo que não sobrecarregava os burgueses de Ribadávia.

     A tabela das portagens apresenta, naturalmente, várias coincidências e variantes. Com oscilações, nuns casos para mais e noutros para menos, e com variantes, aplicava-se aos mercadores vindos de fora, aos quais apenas era permitido vender a retalho no dia da feira – a segunda a que os documentos portugueses fazem referência. Diz-se expressamente que os moradores nada pagariam do pão e do vinho que colhessem, dos panos e dos animais que vendessem ou comprassem, assim como dos moinhos, fornos e almuinhas. Estas cláusulas, nos forais de Ribadávia e de Melgaço, explicam-se com a preocupação de corrigir disposições mais gravosas que se mantinham nos forais derivados de Sahagún, se bem que, em certos aspectos correspondessem a outras que se encontravam nos forais de Guimarães e do Porto (isenção de taxas sobre as compras de reduzido valor, e especificamente sobre o pão), e por outro lado lembram que, tendo Melgaço um foral idêntico ao de “burgos” mais ricos, se previa a expressão do sector agrário, como aliás também acontecia no foral do Porto.

     Tanto a carta de foro de Melgaço como a de Ribadávia são complexas e divergentes em relação a determinados procedimentos jurídicos e à aplicação de penas. Várias disposições são semelhantes, mas no foral de Ribadávia há um número superior de práticas mais rudes e bárbaras. Assim o foral de Melgaço apenas admitia que se pudesse bater até à morte num estranho, isto é, não morador na área do município, que entrasse no termo deste a perseguir um vizinho, com o intuito de fazer justiça directa, sem a pedir ao concelho e, por conseguinte, desprezando-o; neste caso, até os outros vizinhos que se recusassem a ajudar o perseguido pagariam uma coima pesada (cinco soldos) e considerar-se-iam “contradicti concilio” (adversários do concelho). Se em Melgaço, em caso de injúrias, era sempre ao concelho que competia “dare directum” (fazer justiça), em Ribadávia, bastava alvejar um vizinho com palavras ultrajantes (como traidor, “cegulo”, cervo...) para que se pudessem juntar cem ou mil a bater-lhe até lhe tirar a vida, sem qualquer penalidade. De resto são semelhantes as normas sobre a fiança e a penhora, que garantiam que os incriminados não seriam condenados antes do julgamento, e sobre o simples juramento como meio de afastar suspeitas, especialmente no caso de homicídio. As multas correspondentes às várias infracções iam desde os 1000 soldos para a sedição ou a violação de tréguas, em Ribadávia, ou dos 500 soldos para a violação do domicílio, em Melgaço, à mais leve, a de cinco soldos, aplicada à adulteração de medidas e à falta de solidariedade.

     Pelo que respeita à organização do município, o foral de Melgaço apresenta algumas diferenças em relação ao de Ribadávia. Enquanto a povoação minhota é designada como vila e os seu habitantes como vizinhos (vicini) e moradores  (moratores), a segunda denomina-se ora como burgo ora como vila e os seus habitantes como burgueses (burgenses) ou vizinhos.

     Os poderes dividiam-se entre os representantes da autoridade central, exterior ao concelho, e as autoridades concelhias. A mais alta autoridade de que a povoação dependia era, em Melgaço, o rei (só uma vez referido genericamente como domino terre, i. e., senhor da terra), e, em Ribadávia, o senhor da vila (domino vile). A única autoridade que representava um poder exterior era, em Melgaço, o “vicarius regis” (vigário do rei), expressão que não se encontra nos outros forais influenciados pelo de Sahagún mas deriva, com certeza, dos forais de Leão; intervinha apenas na aplicação da justiça nos crimes mais graves (homicídio e rouso) ou quando o réu do crime de injúria grave, mais rigorosamente, de calúnia, se mostrava renitente em cumprir as decisões da justiça. Em Ribadávia, a autoridade régia era representada pelos meirinhos e saiões (designados ora no singular, ora no plural), que parece terem uma intervenção maior na vida local, embora lhes fosse interdito interferir nos assuntos que se podiam resolver per forum vile. Assim como em Melgaço o representante do rei devia ser morador da vila (morator ville), também em Ribadávia, os meirinhos deviam ser vizinhos da vila (vicini de villa), nada se dizendo, sob este aspecto, a respeito do saião.

     O principal órgão da autoridade local, tanto em Melgaço como em Ribadávia, era o concelho, constituído por um restrito número de homens, eleitos entre a população local. Quando se trata da aplicação da justiça, em Melgaço, fala-se dos juízes, expressão que designará o conjunto ou uma parte dos membros do concelho.

     Em 1245, encontramos os moradores preocupados com a construção das muralhas, porque o concelho teve de fazer um acordo com o abade e os monges de Fiães, pelo qual estes se comprometiam a fazer doze braças de muro, e uma torre, naquela área onde o convento tinha a sua adega, do mesmo estilo e com a mesma forma do muro que os melgacense já em parte tinham construído e continuavam a construir em todo o circuito da vila, de pedras rectangulares (lapidibus quadratis) e com uma torre semelhante às que os moradores erguiam a expensas próprias. Esta muralha de Melgaço, pelo menos em parte, estava concluída em 1263, como garante uma inscrição da época, lavrada junto à única porta ainda existente:

                    IN  TEMPORE  DOMINI REGIS  ALFONSI

                    PORTUGALIE   MAGISTER  FERNANDUS   CON

                    POSUIT  MURUM ISTUM  ERA  M C C C I

                    MARTINUS   GONÇALVIS   CASTELLARIUS

                    DOMINI REGIS CIRCUNDAVIT  HANC VILLAM

                    IN HAC PARTE

     (No tempo de D. Afonso Rei de Portugal, o mestre Fernando construiu este muro na era de 1301 [isto é, no ano de 1263]. Martinho Gonçalves, casteleiro do Senhor Rei, cercou a vila por esta parte).

     Em 29 de Abril de 1258, D. Afonso III assinou um novo foral para o concelho de Melgaço, tomando como paradigma o de Monção, cuja outorga definitiva data de 12 de Março de 1261 mas teve uma primeira versão em 1256, ou em data muito próxima. Tinha por modelo os forais do tipo do de Numão, cuja primeira área de expansão foi a Beira Alta e em 1217 fez a sua primeira aparição no Alto Minho, com o foral de Contrasta.

     Certo é que o novo foral[70] não agradou à gente de Melgaço, porque introduzia modificações a que os moradores teriam dificuldade em se adaptarem, das quais a mais importante era certamente o censo anual a pagar ao monarca. Com efeito, esse tributo tinha sido fixado no tempo de D. Sancho II em 1000 soldos leoneses, a pagar em três prestações, ao longo do ano. No novo foral estipulava-se um tributo anual de 350 morabitinos velhos, também em três prestações fixas, repartidas pelas datas do costume. Este valor terá sido fixado provavelmente na previsão do pagamento de um morabitino por casa, o que faria com que se elevasse para 350 o número de famílias instaladas na vila. Essa mudança do panorama demográfico obrigaria a uma redistribuição das terras reguengas que o rei tinha doado ao concelho, a qual, para além de outros problemas, especialmente no respeitante às benfeitorias introduzias pelos seus exploradores, forçosamente diminuiria a dimensão das parcelas, perspectiva suficiente para provocar uma onda de descontentamento.

     O rei acolheu com compreensão as reclamações dos moradores, que desejava continuar a ter por aliados e sentinelas da fronteira. E assim repôs o anterior estado das coisas, outorgando, com pequenos ajustamentos, em 9 de Fevereiro de 1261, uma carta de confirmação do foral concedido por D. Afonso Henriques[71].

     2.1.4. O foral antigo de Castro Laboreiro não chegou aos nossos dias, conhecendo-se a sua existência e o respectivo teor pelo testemunho registado nas Inquirições de D. Afonso III, que o atribui a D. Sancho I (1185-1211)[72]. Situado nas proximidades de uma linha de possível penetração em território nacional a partir da Galiza, o facto de ser terra portuguesa deve-se à bravura e determinação dos homens que em certos momentos defenderam a povoação – o castelo de Castro Laboreiro – garantindo a posse das terras do apertado vale. Durante muitos séculos, a população, continuando a tradição dos velhos castros, refugiava-se estrategicamente num amplo espaço defensivo, rodeado de muralhas, em grande parte conservadas, no alto do monte. Esse lugar não reunia as condições, designadamente as vias de acesso, necessárias para albergar uma população de burgueses, devendo os seus habitantes dedicar-se à caça, à pastorícia e à agricultura nas terras das redondezas.

     Castro Laboreiro não era de facto um burgo e muito pouco tinha que se lhe pudesse assemelhar, mas havia no foral uma cláusula em que se aludia à actividade comercial, concedendo aos moradores a isenção da portagem “de quanto mercam in todo o Reyno”. Esta cláusula resultava da influência do foral da vizinha Melgaço, embora nesses tempos recuados a circulação de homens e de mercadorias fosse maior na zona do que actualmente poderemos imaginar.

     Mas, se esta referência não é bastante para testemunhar com rigor a existência de um verdadeiro tráfego comercial, uma vez que podia aludir simplesmente aos bens que os vizinhos precisavam de adquirir no exterior, as outras passagens do foral mostram a gente de Laboreiro a viver modestamente da agricultura – cada casa dava ao rei dois pães e uma teiga de cevada, uma vez no ano, quando o monarca visitasse a vila – e da montaria ou caça: se El-Rei corresse monte nas cercanias, tinham de o acompanhar, até três vezes no ano, tendo o direito de receber o alimento para esses dias, mas, naturalmente os que fossem agricultores, podiam eximir-se a essa obrigação, optando pelo pagamento da jugada, que consistia em dois quarteiros de pão.

     No foro penal, havia coimas apenas para os delitos maiores: o homicídio, o rouso, o esterco à cara – de todos esses delitos se pagavam ao Rei cinco dinheiros – e o furto ou a penhora abusiva, de importância não fixada, mas revertendo a quinta parte para o cofre régio.

     

       2.2. Ao longo da estrada.

 

       2.2.1. Ponte de Lima.

 

     Ponte de Lima, como o nome regista, nasceu junto de uma antiga ponte, que dava passagem a essa importante estrada de ligação norte-sul, que prefigurou e preparou a unidade do território português, como sua espinha dorsal. Na Idade Média, ia até à Compostela das peregrinações ao túmulo do Apóstolo, de onde, em vez de seguir para o norte, até à Brigantium romana, actual Corunha, podia flectir para Lugo. Através de algumas transversais, podia ligar a vários tramos do caminho francês para Santiago, por onde circulavam peregrinos, guerreiros, mercadores e almocreves, pedintes e vagabundos. Noutro sentido, coincidindo com a velha estrada romana, dirigia-se para o sul, depois de atravessar a Braga arquiepiscopal, ou, seguindo uma alternativa medieval, mais próxima do oceano, cruzava-se com o Cávado em Barcelos e continuava na direcção do Porto, por Rates ou por Vila Nova (Famalicão).

     Com o objectivo de incrementar o desenvolvimento de uma povoação junto da única ponte então existente sobre o rio Lima, lugar de passagem entre o noroeste do condado portucalense e a Galiza ocidental, e portanto de inegável interesse sob os pontos de vista económico e militar, numa data em que as fronteiras ainda andavam muito longe de estar definidas, a D. Teresa pareceu conveniente “ut faciam villam supranominato loco Ponte cautum”, isto é, tornar couto a vila situada no referido lugar de Ponte. Para incrementar a afluência de moradores, atribuiu-lhes uma situação privilegiada no aspecto jurídico e fiscal. Estabeleceu a zona, para além das muralhas ou do núcleo urbano central, até onde se estendia esse estatuto (o couto) e determinou que, em relação ao fisco, beneficiassem de privilégio as herdades que os seus habitantes possuíssem mesmo fora do termo do couto de Ponte de Lima.

     O estatuto de couto traduzia-se na autonomia municipal, e, por conseguinte, na existência de órgãos de órgãos de justiça e de administração civil próprios e ainda num regime especial em relação às tarefas militares. Não contém o foral quaisquer elementos relativos à organização interna da comunidade. A única menção que denuncia a autonomia judicial, adequada ao estatuto de um município, é o privilégio de asilo concedido aos que, tendo cometido crimes noutras localidades, se refugiassem dentro do couto.

     Tem de comum com os burgos nossos conhecidos a reduzida extensão do alfoz municipal e o facto de os moradores pagarem um tributo anual fixo, de um soldo, pela sua casa. Mas não restam dúvidas quanto à importância da componente agrícola neste município, pois o foral estipulava: “de quanto laboraverint in terras ruptas dent terciam et de non ruptis quintam” (dêem um terço do que colherem nas terras cultivadas e um quinto das outras).

     O factor que mais contribuiu para o desenvolvimento da vila foi certamente a feira, a mais antiga que se documenta em Portugal. O foral colocava sob protecção os que nela participassem, ao penalizar (com a multa de 60 soldos) os que lhes fizessem mal (malefecerint), expressão bastante vaga, que naturalmente se referia aos assaltos e agressões mas devia englobar também a opressão com a exigência de portagens ou a cobrança de taxas a elas equivalentes, no caminho da ida ou do regresso.

     Quando D. Teresa fundou o município de Ponte de Lima, o seu termo ou alfoz era muito restrito, incluindo apenas o território correspondente à actual freguesia de Santa Maria dos Anjos e, ao que parece, o da freguesia de Arca. Esse termo alargar-se-á gradualmente, no correr dos tempos, até se chegar ao território do actual concelho de Ponte de Lima.

     A primeira ampliação do termo de Ponte ter-se-á verificado quando, depois das decisões tomadas na reunião da Cúria de 1211, a vila se tornou a cabeça judicial da terra de S. Martinho, isto é, quando essa área ficou sob alçada do juiz de Ponte. A terra de S. Martinho incluía a parte norte do actual concelho de Ponte de Lima e mais as freguesias que hoje estão englobadas na área setentrional do concelho de Viana, curiosamente localizadas na margem oposta àquela em que a vila tinha assento.

     Com a fundação de Viana, através do foral outorgado por D. Afonso III, em 1258, de que trataremos mais à frente, desanexaram-se então de Ponte de Lima as freguesias que passavam a constituir o termo do novo concelho, situadas para lá do rio Podre, que separa as freguesias de Fontão e de Lanheses.

     Em contrapartida, D. Fernando integrou, em 1369, no termo de Ponte de Lima, um vasto território[73], constituído pelo julgado de Aguiar de Neiva[74], pelo de Penela[75] e por uma parte do de Valdevez “como parte pello barco de sueiro e des hi a Igreia de Sam Pedro do Souto e seia a igreia do julgado da dita villa e dhi como parte per Monte Redondo e dhi aa devesa do porto do juiz e pella carreyra como se vay ao spineyro do couto como parte com o julgado de Froyam”. No ano seguinte, este panorama alterar-se-ia, quando D. Fernando, por lhe ter retirado os julgados de Geraz[76], de Santo Estêvão[77] e parte do de Valdevez, para os dar ao infante D. Dinis, seu irmão, compensou o concelho com a anexação dos julgados de Regalados, Vila Chã e Nóbrega, “com toda aldea e logar da Ponte da Barca”, e o julgado de Neiva[78]. Tempos depois, em 1376, o concelho de Ponte de Lima receberia de novo as terras do julgado de Penela[79].

     De Aguiar de Neiva, objecto da anexação ocorrida em 1369, distinguia-se o julgado dito simplesmente de Neiva, que alglutinava as freguesias situadas a juzante, nas margens do mesmo rio, e que foi integrado no de Ponte de Lima em 1370. Mas, em 1372, D. Fernando erigiu a circunscrição em município, dando-lhe como sede o altaneiro castelo, de que hoje não resta uma única pedra, mantendo-se a sua memória apenas no nome da freguesia onde estava implantado: Castelo de Neiva. Segundo a carta fernandina, este era então “huum dos mais fortes que ora ha per o nosso senhorio” e por isso o monarca resolveu completá-lo com uma cerca: “como junto com o dicto castello ha huum lugar em que se pode fazer hua cerca mui boa e tal e tam forte em que os moradores da dicta terra poderam aver acolhimento em tempo de mester”. Para concretizar esse objectivo, D. Fernando achou que o melhor caminho era o de encarregar dessa tarefa os moradores do julgado, uma vez promovido à categoria de município: “olhando como se esto milhor podia fazer avendoo por nosso serviço heemos por bem e mandamos que os moradores da dicta terra seiam exentos e julgado per ssy e fora de sugeiçã e jurdiçam de ponte de lima e que aiam e façam juízes de seu foro”, tudo “com esta condiçam que elles façam hua cerca no monte que sta coom o dicto castello de tal feitura qual he o dicto castello e que façam na entrada da dicta cerca hua torre tal e tam alta como cada hūa das que no dicto castelo stam e hūa cisterna dentro na dicta cerqua”. Segundo a Crónica de D. João I, começou pelo Castelo de Neiva a campanha destinada a reduzir à obediência do Mestre de Avis as vilas e fortalezas do Alto Minho, cujos alcaides estavam do lado do rei de Castela. Era então um “castelo mui forte e bem defemdemte”[80]

 

       2.2.2. Barcelos.

 

     Situa-se Barcelos no lugar que foi, noutros tempos, uma das mais importantes travessias do rio Cávado, especialmente para aqueles – mercadores e almocreves – que faziam o percurso norte-sul e queriam evitar a passagem em territórios onde podiam ser obrigados ao pagamento de direitos senhoriais, designadamente de peagens e portagens, ou cair sob a alçada de determinações gravosas. Esta preocupação terá contribuído para que a via por Barcelos depressa se tornasse uma séria alternativa à antiga estrada romana, que de outro modo tinha passagem obrigatória na Braga Arquiepiscopal.

     Se “tudo nos indica que, desde a época ro­mana ao século XVIII, Barcelos era, na parte baixa da bacia do Cávado, o local preferido pelos viandantes para cruzar este rio”[81], este local de travessia viu aumentada a sua importância no século XII. Aí se instalou um significativo conjunto de moradores que exclusiva ou predominantemente se ocupavam no exercício do comércio e de outras profissões – almocreves, taberneiros, albergueiros, ferradores, e profissionais de variados mesteres.

     D. Afonso Henriques outorgou o foral que lhe conferiu a existência oficial e o estatuto de município, em data que não consta da única e sincopada versão que chegou até nós, mas deverá ser colocada entre 1166 e 1169, e, muito provavelmente, em 1166 ou 1167[82].

     O documento apresenta-se como um resumo ou apontamento sintético e não como um diploma acabado, em forma definitiva. Se este alguma vez existiu, já em 1218, na altura das confirmações, se tinha perdido. Admite-se também que, elaborado apressadamente por ocasião de uma passagem do Rei na localidade, nunca tenha merecido um redacção mais aperfeiçoada. Essas circunstâncias conferiram-lhe características próprias, que, além dos problemas cronológicos, estão na origem de algumas dificuldades de interpretação, nomeadamente das cláusulas atinentes ao foro jurídico, penal e fiscal.

     O Rei estabelecia a respeito dos moradores: “do illis forum ut habeant honorem Bracare et pectent decimam de calumpnia Bracare et decimam de toto labore”. Esta passagem tem sido interpretada, em nosso entender, correctamente, como se dissesse: “Dou-lhes por foro a [mesma] honra de Braga e que paguem a décima da coima de Braga e a décima de todo o trabalho”. Mais esquematicamente, estas disposições quererão dizer o seguinte:

     – os moradores terão um estatuto jurídico (honorem) igual ao dos moradores de Braga;

           – pagarão uma décima da[s] coima[s] (decimam de calumpnia) igual à que pagam os moradores de Braga;

     – pagarão a décima (de todos os rendimentos) do trabalho[83].

     Com efeito, não parece lógico interpretar o foral como se ele determinasse que os vizinhos de Barcelos deviam fazer honra ou prestar homenagem a Braga, ou ao seu Arcebispo, e ainda pagar-lhe os dízimos das coimas e dos rendimentos do trabalho. Não seria coerente que, ao conceder a um município um foral cuja finalidade era a de o libertar de subserviências dominiais, paradoxalmente estivesse o Rei a determiná-las, cerceando os seus próprios poderes e a autonomia do município, e isso não obstante as melhores relações que pudesse ter com o Arcebispo de Braga. Por outro lado, nos arquivos da Sé de Braga, não consta da existência de qualquer registo dessa dádiva nem de qualquer referência à liquidação desses direitos ou à sua reivindicação. Normalmente, mesmo nas instituições eclesiásticas, é mais fácil encontrar referência a um direito no arquivo dos beneficiados do que no daqueles para quem ele se transformava num encargo[84].

     Depois de ter definido o estatuto jurídico e fiscal dos moradores, o foral de Barcelos contém diversas disposições cujo objectivo era o de proteger os burgueses, livrando-os de situações imprevistas incompatíveis com o normal desenrolar das suas actividades. Algumas dessas cláusulas correspondem a uma tendência geral da época, detectável em muitos outros documentos outorgados em território português, e acusam uma relativa modernidade em termos de protecção das liberdades dos cidadãos, em muitos casos cerceadas nos séculos posteriores. Assim

Não eram obrigados a dar fiador por nenhuma infracção ou delito para que estivesse prevista uma pena inferior a dois soldos: pro nulla calumpnia non dent fideiussorem nisi in II solidos;

Certamente com o objectivo de evitar as intermináveis questiúnculas acerca do rigor dos vasos destinados às medições, competia aos compradores e vendedores prestar previamente atenção à precisão das medidas, pelo que não se aplicavam taxas às aferições ou penas às falsificações: non pectent caritel de vasum;

Com a finalidade de proteger os mercadores, designadamente os almocreves, de ciladas e conspirações premeditadas, alegando anteriores delitos, incluindo irregularidades nos negócios, e para lhes dar tranquilidade, era-lhes garantido que não seriam presos nem submetidos a sevícias ou a extorsões inesperadas e incomportáveis, a pretexto da justiça: si fecerint calumpniam in alia parte et ipso die aprehenderint eos pectent eam per forum sue ville; et si in ipso die non aprehenderint eos in alio nichil respondant;

Contribuindo para evitar deslocações improdutivas e inúteis perdas de tempo, ficava assente que as causas relativas às herdades que os moradores possuíssem fora do termo seriam julgadas pelo foro da vila: hereditates quas habuerint fora ville sint iudicate per forum ipsius ville;

Era proibido fazer penhoras indiscriminadamente, admitindo-se apenas as que se destinassem a reivindicar o pagamento de dívidas: quicumque pignoraverit illos nisi fuerit debitor aut fideiussor pectabit mihi D solidos et insuper habebitur pro meo inimico;

Limitava-se a obrigação de fazer “carreira”, por parte dos moradores, designadamente em regime gratuito ou oneroso para os donos dos animais de tiro; mesmo para o serviço do rei, a requisição das bestas de carga obrigaria ao pagamento de um aluguer (alqueire), que variava entre o meio e os dois morabitinos, além da alimentação para as bestas e para o dono ou para o condutor que em vez dele as acompanhasse: dominus qui ipsam terram de me tenuerit et voluerit levare bestias suas ad fossatum domini regis det ei suum alqueire: ad Tuden medium morabitinum et vitam et cevadam; et ad Troncosum et ad Braganciam II morabitinos et vitam et cevadam.

Nada mais os moradores eram obrigados a ceder, nem as trebolhas (os odres ou sacos), nem as carroças (liteiras), nem qualquer outra coisa, a não ser de livre vontade: non aprehendat eis suas trebolias nec suam liteiram sine grato suo nec sua omnia.

     A vila de Barcelos, com seu termo, foi doada, por carta de 8 de Maio de 1297, a D. João Afonso, que desse modo se tornava o primeiro Conde de Barcelos[85], e, após a sua morte, a D. Martim Gil (de Sousa), por carta de 5 de Novembro de 1303[86]. Mas a transformação de Barcelos em condado não terá afectado negativamente a evolução do município. É o próprio terceiro conde, D. Pedro – o célebre trovador e cronista, autor do Livro de Linhagens e da Crónica Geral de Espanha de 1344 – que, em 1341, intervêm junto de D. Afonso IV, em defesa do município, contra os abusos do corregedor, que se sobrepunha aos juízes que exerciam as suas funções dentro do condado[87]. É também em atenção ao quarto conde, D. João Afonso Telo, que se inicia, em 1372, a expansão do termo de Barcelos, com a anexação dos julgados de Penafiel de Bastuço e do couto da Várzea[88].

 

     2.2.3. Vila Nova (Famalicão).

 

    Vila Nova (Famalicão) é, de todas as povoações localizadas ao longo da velha estrada medieval de ligação entre o norte e o sul a que foi concedido um foral no alvor da nacionalidade, aquela que se apresenta com um carácter mais acentuadamente rural. Pelo foral outorgado em 1205, uma superfície agrária foi distribuída por quatro dezenas de cultivadores[89], sendo atribuída a cada um desses quarenta “divisores” uma parcela de terra, de extensão adequada, que ficava sujeita ao pagamento da renda anual de um terço dos frutos, com a sua casa e horta, pelas quais dariam o tributo de um bragal. O “divisor” tornava-se proprietário da sua parcela e das benfeitorias que nela realizasse, podendo inclusivamente vendê-la.

     Apesar do carácter vincadamente rural desta vila, o foral criava aí uma feira quinzenal, ao domingo, concedendo aos que a ela viessem o privilégio de não serem presos nem penhorados nesse dia, mesmo que cometessem algum delito. Além dos agricultores que formavam a comunidade inicial, poderiam quaisquer outros construir em Vila Nova a sua casa, ficando a pagar anualmente o mesmo foro de um bragal. Estes adventícios, dispondo de casa mas sem terra para cultivar, seriam naturalmente comerciantes ou mesteirais.

     As autoridades com efectivo poder local eram, por conseguinte, os juízes, não devendo o mordomo régio e o senhor da terra ingerir-se nos assuntos da vila nem prejudicar os moradores nos seus haveres.

     No mais, a carta de foro é relativamente curiosa, sob vários aspectos, pois quase se limita a remeter para os foros ou costumes de outras localidades e instituições: se nas portagens se adoptavam os usos de S. Pedro de Rates e às bestas de carga se aplicavam as disposições do foral de Guimarães, no foro penal seguia-se, por regra, a Ordem do Hospital, salvo na coima relativa à violação do domicílio, que era de sessenta soldos.

             



[1] Carlos Alberto Ferreira de Almeida, Castelologia Medieval de Entre Douro e Minho, Porto, 1978 (dissertação complementar para as provas de doutoramento em História da Arte), p. 24-49.

[2] Sobre a organização paroquial na área correspondente à diocese de Braga, à data dos inícios de Portugal, cf. especialmente Avelino de Jesus da Costa, O Bispo D. Pedro e a Organização da Arquidiocese de Braga, Tomo I e II, 2.ª ed., Braga, Irmandade de S. Bento da Porta Aberta, 1997 e 2000; Luís Carlos Amaral, Organização eclesiástica de Entre-Douro-e-Minho: o caso da diocese de Braga (sécs. IX-XII), em Del Cantábrico al Duero: Trece Estudios sobre Organización Social del Espacio en los Siglos VIII a XIII, Santander, Universidade de Cantábria – Parlamento de Cantábria, 1999, p. 313-349.

[3] José Angel García de Cortázar, La Época Medieval, História de España Alfaguara II, Madrid, 1983, p. 195.

[4] Cf. Jesús Lalinde Abadía, La foralidad de francos, em Actas de la Reunión Científica “El Fuero de Logroño e su época”. Ayuntamento de Logroño, 1996, p. 23-40.

[5] Cf. Luís G. de Valdeavellano, Orígenes de la Burguesia en la España Medieval, 2. ª ed., Madrid, 1975, p. 105 e ss.; Vazquez de Parga, Lacarra y Uría, Las peregrinaciones a Santiago de Compostela, tomo I, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1948 (reed. facsimilada, Pamplona, Gobierno de Navarra, 1993), p. 466-497.

[6] Ibidem, p. 161.

[7] Luís G. de Valdeavellano, Orígenes de la Burguesia en la España Medieval, 2. ª ed., Madrid, Espasa‑Calpe, 1975, p. 106.

[8] Cf. J. Ignacio Ruiz de la Peña Solar, La formación de la red urbana en el tramo riojano del Camino de Santiago y las colonizaciones francas (siglos XI-XIII), em Actas de la Reunión Científica “El Fuero de Logroño e su época”. Ayuntamento de Logroño, 1996, p. 209-230.

[9] Retoma-se aqui a análise a que procedemos na comunicação O Foral de Guimarães, primeiro foral português, e o contributo dos burgueses para a fundação de Portugal, em «II Congresso Histórico de Guimarães “D. Afonso Henriques e a sua época – Actas”», vol. 4, Guimarães, 1996, p. 45-66.

[10] Tomás Muñoz y Romero, Colección de Fueros Municipales, Madrid, 1978, p. 235-238.

[11] Tomás Muñoz y Romero, Colección…, p. 478-479.

[12] Tomás Muñoz y Romero, Colección…, p. 334-340. A propósito do foral de Logroño e da sua influência, cf. as já citadas Actas de la Reunión Científica “El Fuero de Logroño e su época, Ayuntamento de Logroño, 1996.

[13] Rafael Gibert, El Derecho Municipal de Leon y Castilla, em «A.H.E.D.», 21 (1961), p. 718.

[14] Tomás Muñoz y Romero, Colección…, p. 335.

[15] Citem-se, em 21 de Março de 1101, o escambo com o mosteiro de Sahagún de tudo quanto possuía em Villa Meriel, na comarca de Saldanha, província de Palência, em troca do mosteiro de S. Pedro de Tronco: D. M. P. -I, p. 11; por volta de 1110-1111, a carta de foral outorgada aos povoadores de Oca, na província de Burgos: ibidem, p. 783.

[16] O foral de Guimarães é conhecido através do diploma de confirmação de D. Afonso II (original em T.T., Gav. 15, m. 8, n.º 20), de Outubro de 1217. Os anos de 1217 e 1218 foram os de maior número de confirmações feitas por D. Afonso II. A confirmação do foral de Guimarães encontra-se no livro da Chancelaria (T.T., F. A., m. 12, n.º 3, fl. 51 v.º), num caderno que apenas tem confirmações do ano de 1217 e entre duas datadas, sem dia, de Outubro desse mesmo ano, a da carta de foro de Vila Chã, em Alijó (distrito de Vila Real) e a do foral de Mesão Frio. Seria o primeiro documento da cópia a limpo dos registos da Chancelaria de D. Afonso II (T.T., F. A., m. 12, n.º 3, fl. 1), vulgarmente conhecida como Forais Antigos de Santa Cruz, se, na mesma época da elaboração, a este não tivesse sido acrescentado um caderno a que foi colada a cópia do foral de Ponte de Lima. Foi também objecto de uma confirmação genérica de D. Afonso III, a 20 de Março de 1254: T.T., Ch. D. Af. III, livro I, fl. 7, sem a reprodução do respectivo teor, e, igualmente, de outros monarcas, encontrando-se copiado, a fl. 70, do livro Forais Velhos de Leitura Nova.

[17] No de Guimarães, acrescenta-se igual tributo a pagar pelas bancas onde se vendia a carne, enquanto em Jaca, nos moinhos, se pagava o tributo de um pão por fornada.

[18] Cf. Torquato de Sousa Soares, Les bourgs dans le Nor Ouest de la Péninsule Ibérique, separata de «Bulletin des Études Portugaises» 1943, Lisboa, 1944, p. 7.

[19] É, por conseguinte, de rever a afirmação de alguns autores que dizem que a ampliação dos privilégios contidos no foral foi uma recompensa pelo apoio que os vimaranenses tinham dado a D. Afonso Henriques na batalha de S. Mamede.

[20] T.T., Ch. D. Af. III, liv. I, fl. 7.

[21] Ibidem.

[22] T.T., Ch. D. Af. III, liv. I, fl. 28 v.º. Publicado por Virgínia Rau, Feiras Medievais Portuguesas, 2.ª ed., Lisboa, 1983, p. 174-176, com a seguinte nota: “Tradução do registo original em latim que se encontra na Chancelaria de D. Afonso III, liv. 1I, fol. 28 v. Foi transcrito em latim em Vimaranis Monumenta Historica, p. II, 218-219, com omissão da frase «et alia fiat in medio Septembri» que o copista saltou no texto mas que acrescentou à margem do registo.

[23] T.T., Ch. D. Af. III, liv. I, fl. 16.

[24] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 46 v.º.

[25] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 63 v.º.

[26] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 108 v.º-109.

[27] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 127.

[28] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 198 v.º.

[29] Alfredo Pimenta, Os Forais Vimaranenses, em “Anais [da Academia Portuguesa da História]”, Ciclo da Fundação da Nacionalidade, II (1940), pp. 33-146.

[30] É, porém, de observar que estas disposições apenas se terão difundido a partir de uma data que andará à volta de 1135, e, por conseguinte, no foral de Constantim haverá uma interpolação posterior a essa época. De facto, a partir de determinada altura, algumas cláusulas, em consequência da difusão gradual de práticas jurídicas consideradas mais justas, ou por determinação da lei geral, são, integradas em alguns forais, independentemente dos seus paradigmas – é o caso da exigência de uma queixa formalizada para que alguém seja obrigado a responder perante os órgãos da justiça, cuja inclusão nos forais se generaliza a partir de meados da década de trinta, no século XII. Além do foral de Constantim, um dos mais antigos documentos em que essa cláusula se encontra é a confirmação do foral de Ansiães [1137-1137], onde aparece a seguir à assinatura do notário.

[31] Em geral, sobre a mineração na Idade Média, em Portugal, cf. Luís Miguel Duarte, A actividade mineira em Portugal durante a Idade Média, em “Revista da Faculdade de Letras – História”, II série, vol. XII (Porto, 1995), p. 75-111; especificamente sobre o ferro, Mário Jorge Barroca, Ferrarias Medievais do Norte de Portugal, em “Trabalhos de Antropologia e Etnologia”, 28 (Porto, 19988), p. 211-241.

[32] T.T., F. A., m. 12, n.º 3, fl. 33 v.º-34; F. S. C., 21 v.º; Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 57 v.º; F. V., fl. 73.

[33] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1380.

[34] T.T., Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 8- 8 v.º; F. V., fl. 97.

[35] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1213.

[36] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1217-1219.

[37] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1224.

[38] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1230, 1231, 1232, 1233.

[39] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1237.

[40] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1211-1243.

[41] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1228.

[42] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1228.

[43] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1237.

[44] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1232.

[45] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1243.

[46] P.M.H.-Inquisitiones, vol. I, pars II, p. 1233.

[47] Veja-se, neste trabalho, o capítulo dedicado a Trás-os-Montes.

[48] T.T., Gav. 15, m. 3, n.º 8; F. A., m. 12, n.º 3, fl. 52; F. S. C., fl. 9 v.º; Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 30; F. V., fl. 71 v.º.

[49] T.T., Ch. D. Dinis, liv. I, fl. 263.

[50] Existia dele uma pública forma, de 19 de Abril de 1326, no arquivo do mosteiro de Bustelo, já destruído. Dela se fez uma cópia no século XVIII, para a colecção de documentos relativos às cortes, a qual ainda existe na Academia das Ciências de Lisboa. Foi publicado em Documentos para a História Portuguesa, p. 199, nota 236, P.M.H.-L.C., p. 429, e D.M.P.-I, p. 470 e 789.

[51] Em 1299, 1302 e 1303, o território de Aregos seria palco de contratos de aforamento entre alguns particulares e D. Dinis, e, já no tempo de D. Afonso IV, de inquirições, efectuadas em 1328. T.T., F. A., m. 4, n.º 5.

[52] T.T., Além Douro, liv. II, fl. 269 v.º-270. Publicado por José Marques, A Origem do Concelho de Ribeira de Pena (1331), em Revista de Guimarães, vol. 103 (1993), p. 325-341.

[53] Xesús Ferro Couselo, Tumbo de Fiães, Transcripción, Ourense, Museeo Arqueolóxico Provincial, 1995. Trata-se de um edição póstuma da responsabilidade de Aser Angel Fernández Rey, a que se deve a introdução e os índices. Sobre esta edição, ver José Marques, O Cartulário de Fiães foi maltratado, em “Revista da Faculdade de Letras. História”, II série, vol. XII, Universidade do Porto, 1995, p. 605-614. Apesar de tudo, foi esse o texto que pudemos utilizar.

[54]Já em 1170, a demarcação dos limites de uma herdade doada por um particular ao mosteiro é feita “per concilium et per bonos homnes terre” (A.D.B., Tombo de Fiães, fl. 16 v. Publicado em Xesús Ferro Couselo, Tumbo de Fiães, cit., p. 62). Nada porém nos garante que este “concilium” já fosse o de Melgaço e não outro, em cujo termo a herdade doada se localizaria, tanto mais que o documento é assinado em Tui e se diz feito com o beneplácito de Fernando II de Leão.

[55] A. D. B., Tombo de Fiães, fl. 17 e 94; publ.: Xesús Ferro Couselo, Tumbo de Fiães, Ourense, 1995, n.º 55, p. 63 e n.º 274, p. 179. Dois outros registos do mesmo documento, a fl. 94 e 94 v.º (Xesus Ferro Couselo, Tumbo de Fiãaes, cit., p. 178-179 e 179-180), têm a data de 30 de Junho de 1183, mas enquanto nestes o documento se diz “factum in tempore regis domini Sancii”, no registo N.º 55, que de todos eles é o primeiro que aparece no cartulário, o documento tem a data de 1185 e diz-se “factum in diebus regis Alfonsi Portugalis et filio eius Sancio”.

[56] A. D. B., Tombo de Fiães, fl. 95; publ. Xesus Ferro Couselo, Tumbo de Fiães, cit., n.º 276, p. 180.

[57] A. D. B. , Tombo de Fiães, fl. 95; publ. Xesus Ferro Couselo, Tumbo de Fiães, cit., p. 180-181.

[58] O estudo do foral de Melgaço que se faz de seguida, recolhe, em grande parte, a análise constante da nossa comunicação Os Forais Antigos de Melgaço, terra de fronteira, apresentada nas IV Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, subordinadas ao tema As relações de fronteira no século de Alcanices, e publicada no vol. 1 das respectivas actas, na «Revista da Faculdade de Letras – História», II série, vol. XV (Porto, 1998), p. 99-128. O foral acaba também de ser objecto da monografia de José Marques, Forais de Melgaço, Câmara Municipal de Melgaço, 2003.

[59] Cf. o quadro genealógico dos forais derivados do de Sahagún no fim do capítulo seguinte.

[60] Anónimo I, cap. III, ed. J. Poyol, BRAH 76 118, cit. por Ana Maria Barrero García, Los Fueros de Sahagún, em A.H.D.E. 43 (1972), p. 494.

[61] Tomás Muñoz y Romero, Colección de Fueros Municipales y Cartas Pueblas, Madrid 1847 (reed. facsim., 1972 e 1978), p. 301-306.

[62] Tomás Muñoz, l. c.l. c., p. 301.

[63] Tomás Muñoz, l. c.l. c., p. 307-308.

[64] Ana Maria Barrero García, l. c.l. c., p. 402.

[65] Tomás Muñoz, l. c.l. c., p. 309-312.

[66] Tomás Muñoz, l. c.l. c., p. 313-320.

[67] A. H. de Oliveira Marques e outros, Chancelarias Portuguesas / D. Pedro I, Lisboa, 1984, p. 243-254.

 [68] P.e M. A. Bernardo Pintor, Melgaço Medieval, Braga, 1975, pp. 19 e 25, e ss.

[69] António Matos Reis, l. c., p. 99-128.

[70] T.T., Ch. D. Af. III, livro I, fls. 27 v.º-28 v.º.

[71] T.T., Ch. D. Af. III, livro I, fls. 50-51 v.º.

[72] P.M.H.-Inquisitiones, p. 378. Cf. P.e Bernardo Pintor, Castro Laboreiro e os seus Forais, Melgaço, 1959.

[73] Arquivo Municipal de Ponte de Lima, pergaminho n.º 5; T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 47 v.º.

[74] Ao julgado de Aguiar de Neiva pertenciam as freguesias de S. André de Vitorino, S. Salvador de Navió, S. Tiago de Poiares, S. Maria de Ardegão, S. Martinho de Friastelas e S. Julião de Paçô (Freixo), estas duas só mencionadas em 1258, além de outras nove actualmente integradas noutros concelhos.

[75] Ao julgado de Penela, com mais de três dezenas de freguesias, uma parte das quais integradas no actual concelho de Vila Verde, pertenciam as de Fornelos, Queijada, Sinde (Anais), Gaifar, Fojo Lobal, S. Lourenço (do Mato), Sandiães, Calvelo, Cabaços, S. Martinho da Gândara, Gemieira, S. João da Ribeira, Arca, Lavradas, Gondufe, Mosteiro de S. Marta e S. João de Serdedelo, Beiral, Boalhosa (couto da Ordem do Hospital).

[76] Constituído pelas actuais freguesias de S. Maria, S. Leocádia e Moreira de Geraz do Lima, todas integradas no concelho de Viana do Castelo.

[77] O julgado de S. Estêvão era constituído pelas freguesias de S. Miguel da Facha, S. Mamede de Padela (Seara), S Maria de Barco e Mosteiro de Vitorino (hoje, estas duas numa só freguesia, Vitorino das Donas).

[78] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 60 v.º.

[79] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl.187 v.º.

[80] Fernão Lopes, Crónica de D. João I, vol. II, Porto, 1983, p. 16.

[81] Carlos Alberto Ferreira de Almeida, Barcelos, Lisboa, Ed. Presença, 1990, p. 10.

[82] A versão que chegou até nós é a que foi objecto da confirmação de D. Afonso II e se conhece apenas através dos registos elaborados pela respectiva Chancelaria. Ao texto faltam cláusulas habituais na parte final, inclusive a data. Embora poucos, o documento fornece no entanto alguns dados que permitem uma aproximação cronológica:

O primeiro é o de D. Afonso Henriques se intitular Rei, o que apenas se verifica depois de 1139. Este facto e o de não figurar na subscrição o nome da sua esposa, a rainha D. Mafalda, que só aparece nos documentos posteriores a 1146, assim como o de seus filhos, levou Alexandre Herculano a atribuir-lhe uma data entre 1140 e 1146. Mas, tendo a rainha falecido em 1157, deixa novamente de ser referida nos documentos, a partir desse ano, e a falta de menção dos filhos, para Rui de Azevedo, pode resultar simplesmente do carácter abreviado do documento.

Da lista de confirmantes, escassos dados se podem recolher, uma vez que em relação a quase todos eles, incluindo os abades dos dois mosteiros mencionados, carecemos de referências documentais. Apenas Gonçalo Mendes [de Sousa] aparece documentado no exercício da mordomia a partir de Abril de 1157, mas pode tê-la iniciado já no ano anterior, isto é, em 1156, e confirma pela última vez, nessa qualidade, um documento referido numa versão com a data de Março e noutra com a de Dezembro de 1167, embora possa ter continuado nas mesmas funções até aos primeiros meses de 1169, uma vez que apenas em Março deste ano aparece o conde Vasco Sanches a desempenhar o mesmo cargo. Será esta a primeira baliza cronológica a reter: 1156-1169, se não 1156-1167.

Uma das cláusulas do documento pressupõe que D. Afonso Henriques dominaria em Coimbra, em Tui, em Bragança e em Trancoso. Prevê-se, com efeito, a hipótese de os proprietários de animais de carga serem requisitados com as suas bestas para fazer transportes até essas localidades, que assim configuram, de uma forma genérica, as fronteiras do território a que no momento se estendia o domínio de D. Afonso Henriques.

Ora D. Afonso Henriques conquistou Tui e todo o seu território em Dezembro de 1159. Em 30 de Janeiro de 1160 encontrou-se aí com o conde Raimundo Berengário IV de Barcelona para tratar do casamento da sua filha infanta D. Mafalda com Raimundo, filho do referido conde. O território de Tui foi retomado pelo rei de Leão em 1163, mas, dois anos depois, em 1165, D. Afonso Henriques voltou a recuperá-lo e ainda dominava sobre ele em 1170. A baliza cronológica passa a situar-se entre 1160-1163 e 1165-1167 (ou, no máximo, 1165-1169).

O conhecimento da data a partir da qual Trancoso - outra das localidades referidas - passou a fazer parte do território português poderá ajudar-nos a estabelecer a cronologia do próprio foral de Trancoso e do de Barcelos. Trancoso, do mesmo modo que Moreira de Rei, Marialva, Celorico e Aguiar da Beira receberam cartas de foro, que referem como seu modelo a de Salamanca e apresentam outras características comuns, incluindo a omissão das cláusulas finais (sanção, data e róbora), no texto que chegou até nós, que é o da confirmação por D. Afonso II. Ora a outorga destes forais está relacionada com os acontecimentos que se desenrolaram nesta região após a reconquista de Ciudad Rodrigo por Fernando II de Leão, em 1161, a qual teria importantes reflexos na reocupação do território circundante e, por conseguinte, na organização destes municípios, de inquestionável interesse estratégico em relação às terras de Ribacoa, correspondentes em boa parte à nossa Beira Alta. A D. Afonso Henriques não terá agradado o domínio de Fernando II sobre uma área que restringia o espaço vital de que se sentia carecido para consolidar e manter a sua independência e por isso, com a ajuda dos cavaleiros salamantinos, invadiu, em 1162, a Estremadura leonesa, atacando Ciudad Rodrigo e apoderando-se de Salamanca, que estava sob o seu domínio em 13 de Janeiro de 1163[82]. As cartas de foral de Trancoso, Marialva, Moreira e Celorico da Beira terão sido outorgadas, provavelmente por Fernando II, em 1161, e renovadas, após a sujeição, por D. Afonso Henriques, num dos anos imediatos, 1162 ou 1163. [É também provável que por esta mesma data, se não foi outorgado o foral de Freixo de Espada Cinta, tenham sido confirmados os de S. João da Pesqueira, Penela, Ansiães e Paredes, localidades situadas no Alto Douro e confinantes com o território de Riba Coa]. A data do foral de Barcelos seria por conseguinte posterior a estes acontecimentos e muito provavelmente, conjugados todos os factos e datas, com a necessidade de tempo para as deslocações do Rei, deverá ser colocada entre 1166 e 1169, e, possivelmente, em 1166 ou 1167. 

[83] Estas importâncias seriam pagas ao Rei, embora cobradas pelo concelho, que pouco mais tarde as passaria a guardar para si, em troca de um censo anual que passou a entregar ao monarca, como testemunham as inquirições de 1220. A inquirição de D. Afonso II menciona, com efeito, os vários impostos a que os moradores são obrigados, referindo em último lugar os tributos correspondentes à administração da justiça e especificamente às coimas devidas pelas infracções e delitos, que são aquelas a propósito das quais no foral se faz referência a Braga. Ora logo a seguir diz-se «Et modo est villa in renda pro CCV morabitinos», isto é, «agora [o município] paga apenas uma renda (anual) de 205 morabitinos»[83]. Esta renda substituía os vários tributos locais, não excluindo vocem et calumpniam secundum suam cartam, que, ainda por cima, era a última obrigação a que a inquirição acabava de fazer referência. Curiosamente, na inquirição de D. Afonso III não se faz menção desta renda, mas apenas dos tributos que ela substituía. Afigura-se, no entanto, oportuno salientar que, ao referir as coimas, embora numa linguagem que se pode considerar intermédia entre o latim medieval e a incipiente língua portuguesa, o texto da inquirição não admitirá dúvidas quando regista: «et pectam decima de caomia de Bracara», expressão que de nenhuma forma pode traduzir um dativo e por conseguinte um pagamento de coimas à Sé de Braga.Estas cláusulas remetem-nos para um momento anterior à outorga definitiva do foral, que corresponde à fase da informação prévia e da negociação, em que não era raro empregar termos comparativos, que por vezes deixaram a sua marca nos textos dos documentos: a muitas localidades foi dado o foral «de Salamanca», a outras o «de Ávila», o «de Évora», o «da Guarda», etc.; os habitantes de Melgaço pediram e obtiveram do Rei a concessão do foro «de Ribadavia», assim como aos Porto o Bispo outorgará « tam bonos foros quales habent in Sancto Facundo». 

[84] No entanto, não é esta a opinião de José Marques, Os Forais de Barcelos, Barcelos, 1998, p. 15. É de observar que expressões idênticas aparecem noutros documentos de época próxima. Por exemplo, no aforamento de Lapela (freguesia de Fonte Boa, Esposende, diz-se, em 1208, “debent dare domino terre pro mediato Iulio singulos almudes de tritico pro fogazas per mensuram de Ratis” e “debent peytare vocem sicud de Hospitali” (T.T., Gav. 11, m. 11, n.º 15). Também no foral concedido a Vila Nova [de Famalicão], deparamos com cláusulas semelhantes, como veremos de seguida.

[85] T.T., Ch. D. Dinis, liv. III, fl. 3.

[86] T.T., Ch. D. Dinis, liv. III, fl. 33 v.º.

[87] T.T., Ch. D. Af. IV, liv. IV, fl. 69.

[88] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 94 .

[89] T.T., F. A., m. 2, n.º 3, fl. 4 v.o; F. S. C., fl. 32; Ch. D. Af. III, Liv. I, fl. 37; F. V., fl. 53; Biblioteca Pública Municipal do Porto, Manuscritos inéditos, n.º 1450. Publicado em PMH-LC, p. 530-531, e D.D.S., p. 246. Este foral apresenta-se com uma fórmula menos solene do que os outros até agora mencionados, e por isso é reduzido o número dos confirmantes. Embora o documento não ofereça outras indicações geográficas que ajudem a identificar esta “Vila Nova”, a presença, logo em primeiro plano, de Menendus Fernandi, “tenens” de Vermoim e Faria, e do Arcebispo de Braga, D. Martinho, e a ausência de outros que desempenhassem noutra região idênticas funções, permitem concluir que se trata de Famalicão, situada na diocese de Braga, precisamente entre Vermoim e Faria, cabeças das terras do mesmo nome e hoje simples freguesias dos concelhos, respectivamente, de Famalicão e Barcelos. cão e Barcelos.