sábado, 30 de outubro de 2021

3.2 – Douro Litoral

       1. O Porto

     O restauro da diocese do Porto enquadrou-se na gradual reorganização administrativa, económica e religiosa do território português, que se seguiu à reconquista. Francês de origem, mas discípulo e depois colaborador principal de D. Diogo Gelmires, D. Hugo, primeiro bispo portuense deste período, eleito em 1113 e sagrado em 1114, só entre 1117 e 1119 teria ocasião de permanecer mais longo tempo na diocese, no intervalo das suas deslocações à Cúria Romana (1115) e ao concílio de Reims (1119), onde do seu conhecido e particular amigo de Santiago, o Papa Calisto II, filho dos Condes da Borgonha e irmão de D. Raimundo Conde da Galiza, iria obter além da dignidade metropolitana para Santiago, em sucessão de Mérida, então sob o jugo muçulmano, e da legação apostólica para Diogo Gelmires, a definição dos limites da Diocese do Porto com as de Coimbra e de Braga.

     Embora também Diogo Gelmires, bispo e ao mesmo tempo senhor temporal de Santiago de Compostela, estivesse interessado em que a nova diocese fosse entregue um homem da sua inteira confiança, a carta de doação do couto do Porto ao seu Bispo, outorgada por D. Teresa[1], dá razão ao papel que Luís Gonçalves de Azevedo atribuiu à mediação do Conde D. Henrique e de D. Urraca[2], na escolha de D. Hugo ou pelo menos no processo conducente ao restauro da diocese, pois que já antes fora dotada com todos ou parte dos bens, que são objecto da carta de D. Teresa: “quod primitus soror mea regina Urraca dederat”. O Bispo estava, de facto, nas boas graças de D. Teresa[3], como se depreende de esta lhe confiar a jurisdição temporal do burgo portuense, através da citada carta de 18 de Abril de 1120. 

     1.1. A fundação do burgo.

     Para organizar a administração do burgo que D. Teresa lhe doara, D. Hugo outorgou, em 14 de Julho de 1123, o foral do Porto[4]. Na elaboração deste documento, o prelado serviu-se dos conhecimentos que uma vasta experiência lhe proporcionara, nas deambulações através da Galiza e, de um modo geral, através do norte peninsular, ao serviço de D. Diogo Gelmires.

     Poucos forais tinham sido outorgados, até ao momento, no Condado Portucalense. De outorga régia ou imperial contavam-se o foral de S. João da Pesqueira, município só mais tarde integrado no condado portucalense, assim como os primitivos forais de Coimbra e Santarém. Por outorga condal surgiram os forais de Guimarães e de Constantim, do início do governo do conde D. Henrique, e, do seu final, os de Sátão, Coimbra, Soure, Tavares, Tentúgal, e Azurara da Beira, na frente sul do território, todos em 1111 ou à volta desse ano. D. Teresa confirmará o foral de S. Martinho de Mouros em 1121, a que se seguirá a outorga do foral de Viseu, em 1123, do de Ponte de Lima, em 1125, do de Ferreira de Aves, por 1126, surgindo neste intervalo o de Sernancelhe, em 1124, com um outorgante aparentemente senhorial, mas de facto a agir na qualidade de alcaide nomeado por D. Teresa.

     Apenas o foral de Arganil fora outorgado por um Bispo, o de Coimbra, em 1114. O do Porto seguiu-se a este, no rol dos primeiros forais cuja outorga se ficou a dever não ao supremo poder político, neste caso à autoridade condal, mas a uma autoridade eclesiástica, com a particularidade de ser concedido a um burgo que se desenvolvia nos arredores da Sede episcopal.

     Ao outorgá-lo, D. Hugo apenas podia ter presentes como hipotéticas referências, no território português, os de Constantim e de Guimarães – que, de facto, não lhe seriam desconhecidos – dado que os outros, pelo seu arcaísmo ou pelo carácter eminentemente agrário dos espaços a que se destinavam, se não adequavam à situação do burgo portuense.

     No seu passado, como colaborador da administração eclesiástica e temporal da Galiza, D. Hugo estava a par dos movimentos de emancipação burguesa e municipalista que atravessava nessa altura uma das fases mais dinâmicas em todo o norte da Península Ibérica, acompanhando a vasta animação que se estendia ao longo da velha estrada que se renovou com o nome de Caminho de Santiago, e que, no aspecto religioso, ficou a dever o seu maior impulso a D. Diogo Gelmires, entusiasmado com o engrandecimento de Compostela e da sua catedral, dedicada às relíquias físicas ou talvez só espirituais de Santiago, e ao autor do Codex Calistinus, Calisto II, Papa de 1119 a 1124, filho do Conde Guilherme da Borgonha e, por conseguinte, irmão de D. Raimundo conde da Galiza.

     D. Hugo faria parte dessas levas de francos que deixarem a pátria de origem para se integrarem nas hostes que fizeram as campanhas da reconquista, como D. Raimundo e D. Henrique, ou que participaram na reorganização religiosa, como alguns dos monges de Cluny, ou na renovação económica, acompanhada pelo renascimento urbano, tantas vezes referido, que teve nos burgos um dos seus principais expoentes.

     Já tivemos oportunidade de analisar o parentesco do foral outorgado pelo Conde D. Henrique a favor do burgo vimaranense com dois dos mais importante forais de povoações situadas ao longo daquela estrada: o foral de Jaca, de 1063, onde pela primeira vez aparece o termo burgueses a designar os que se dedicavam ao comércio e aos ofícios não agrícolas, e o foral de Logroño, influenciado pelo anterior e de 1095.

     Mas D. Hugo tinha outras referências, na própria Compostela, onde fizera a sua carreira anterior à eleição para o Porto. O primeiro foral de Santiago foi outorgado, pelo conde D. Raimundo, numa assembleia magna então realizada na cidade, cuja convocatória se deverá talvez a D. Diogo Gelmires[5]. Em 1113, D. Diogo Gelmires outorgou uma nova carta “ad protegendos pauperes” e “ad protegendum populum, ad exibendam justitiae normam”, destinada as povos do bispado de Compostela “excepta Compostelana urbe, omnisque burgis, quo advenae aliique complures confluentes statuta nullatenus observare valerent”[6].

     Apesar da supressão dos maus foros, proclamada no diploma de 1105 (isenção de fossadeira, extinção da lutuosa e das osas matrimoniais, anulação da taxa de caritel ou aferição de medidas, proibição de penhoras para valores superiores a cinco soldos, limitação da obrigação de hoste a um dia, etc.), e da intenção de proteger os pobres e o povo anunciada no intróito do foral de 1113, a administração da justiça atingia laivos de excessivo rigor e o suporte da máquina eclesiástica, administrativa e militar do senhorio implicava um forte pressão fiscal, que foi por certo a principal causa das revoltas e sublevações urbanas de 1117 e 1136, com grandes e degradantes humilhações para o Arcebispo e até para D. Urraca.

     Em 1123, D. Hugo estava atento a esses problemas. Na sua bagagem estaria não só o conhecimento dos amargos dissabores que o Bispo de Santiago sofreu em 1117 mas também a situação de confronto vivida em Sahagún em anos mais recuados (1087), para cuja resolução foi necessária a intervenção pessoal de Afonso VI, e novamente ao iniciar-se a segunda década do século XI. No foral de Compostela, de 1113, reflectir-se-ão, aliás, as alterações introduzidas em 1110, pelo abade do mosteiro, no foral de Sahagún, suprimindo o núncio e a maneria[7].

     Como era frequente, se não quase uma regra, entre o Bispo D. Hugo e os burgueses do Porto estabeleceram-se contactos prévios ou mesmo negociações preparatórias da elaboração e outorga do foral: não se tratava de mera retórica, quando, no preâmbulo, o foral se apresentava como outorgado “cum consensu clericorum nostrorum et consilio proborum virorum”.

     Felizmente, só mais tarde, no início do século XIII, o Porto conhecerá o afrontamento entre os burgueses e o seu Bispo[8], mas os acontecimentos pouco antes ocorridos na Galiza contribuiriam para que os burgueses do Porto não aceitassem um regime que se considerasse idêntico ao de Santiago e não deixariam de levar a que o Bispo, com o intento de lhes captar a simpatia, acenasse com um estatuto mais convidativo, como era o que, no termo de vários ajustamentos, regulava as relações entre os monges de Sahagún e os burgueses que animavam a povoação instalada nas cercanias do mosteiro.

     1.2. O paradigma.

     O paradigma, de que D. Hugo se serviu, aliás muito livremente, foi o foral do burgo formado nos arredores do mosteiro de San Facundo e San Primitivo (de San Facundo ou San Hagún vem o nome actual da povoação correspondente, Sahagún), redigido certamente pelos monges, embora outorgado por Afonso VI, em 1084[9]. D. Hugo conhecia bem os foros de Sahagún e o modo como eram respeitados. Se não chegou a viver longamente no mosteiro, estanciou nele diversas vezes. Pouco antes da outorga do foral do Porto, participou no concílio realizado em Burgos, em 1117, no qual se trataram assuntos relativos a Sahagún[10], e, mais ainda, em 1121, já depois de lhe ter sido feita a doação do burgo do Porto, participou no concílio de Sahagún[11].

     Serviu o foral de Sahagún de modelo a vários outros, nas Astúrias e na Galiza (Oviedo, Avilés, Allariz, Ribadavia, Santander, Santillana...)[12], e até em Portugal (Melgaço), mas, na altura em que foi outorgado o do Porto, apenas tinha influenciado o primeiro foral de Silos, de 1085[13].

     O próprio Bispo seguiu bem de perto a redacção do foral, se é que não foi o autor da minuta. Discípulo e depois colaborador de D. Diogo Gelmires, que por sua vez tinha sido chanceler de D. Raimundo, D. Hugo era instruído nas artes da escrita, o que aliás evidenciou na Historia Compostelana, de que foi um dos autores.

     Embora não tenha sido dedicado um estudo aprofundado à sua figura e à sua personalidade – obscurecida pela colaboração dedicada que prestou a D. Diogo Gelmires – os documentos fornecem-nos indícios de que se tratava de um homem inteligente, corajoso, hábil, de fácil relacionamento com os outros, que, além de ter posto estas qualidades ao serviço do seu patrono, as soube utilizar algumas vezes para conciliar espíritos desavindos. É de pensar que esta característica terá determinado a sua escolha para Bispo do Porto, e, que, em tais funções continuou a evidenciar a mesma capacidade. A sua inteligência e a sua habilidade para congraçar os ânimos estarão reflectidas no foral do Porto, que, aparentado com os forais de Santiago e descendente, em linha recta, do primitivo foral de Sahagún, os superou em linearidade e clareza e sobretudo no respeito que lhe mereceu uma certa autonomia da comunidade de burgueses sobre as quais o prelado detinha o senhorio.

     D. Hugo diz expressamente: "hominibus in Portugalensi burgo abitantibus vel qui ad abitandum venerit, dono et concedo (...) tales et tam bonos foros quales habent in Sancto Facundo". Mas o foral do Porto é mais breve e simples, tendo sido expurgado de várias cláusulas excessivamente rígidas ou vexatórias, que, em Sahagún, perturbaram, algumas vezes, a paz entre os burgueses e o mosteiro.

     O foral pressupõe que está reservado ao Bispo o poder judicial, e ao seu meirinho as funções de administração económica e intervenção policial[14]. Nos assuntos mais importantes, o Bispo ouvia o “consilio proborum virorum”, a cuja colaboração, o próprio meirinho, em certas circunstâncias, devia igualmente recorrer, como meio de evitar injustiças e prepotências, sob pena, se o não fizesse, de ser destituído.

     Aliás, no capítulo penal, a carta de foro do Porto é muito breve. Depois de estabelecer a uniformidade das medidas a usar na compra e na venda, designadamente do pão, do vinho e do sal, atribui aos transgressores uma pena bastante pesada (cinco soldos) e considera grave delito a sonegação das portagens, que é penalizada com o pagamento do dobro do seu valor e a “inimizade” do bispo. Quanto ao mais, é excepcionalmente lacónica: “decima pars reddatur nisi fuerit rausum et homicidium et maiorinum”.

     Desde que liquidasse os devidos tributos, qualquer cidadão tinha liberdade de se instalar no burgo e de o deixar[15], de comprar e de vender. Podia arrotear as terras situadas fora dos muros, pagando a respectiva renda[16]. O tributo fundamental era de um soldo anual por cada casa. As transacções estavam sujeitas a um tabela fixa de portagens, muito semelhante à que o conde D. Henrique estabelecera para Guimarães e Constantim.

         1.3. Os burgueses e o seu bispo.

     O foral concedido por D. Hugo representava, como acabamos de ver, um significativo progresso a favor dos destinatários, em relação ao foral de Sahagún. Esse facto não evitou que, mais tarde, surgissem contendas entre o poder senhorial do bispo e os burgueses[17]. Algumas dessas contendas enquadram-se no cenário mais vasto das contendas entre os monarcas e os bispos do Porto.

     O primeiro conflito que opôs os burgueses e o prelado aconteceu numa data que os documentos não fixaram com rigor, no amplo aro que vai de 1186 a 1234[18], podendo inserir-se no quadro dos problemas que por volta de 1208 envolveram D. Sancho I e o Bispo D. Martinho Rodrigues.

     A vontade manifestada pelo Rei de que o bispo “habeat ipsam villam de Portu sicut unquam eam melius habuit Sancta Maria in diebus patris mei et in meis” coloca-nos com efeito no reinado de D. Sancho I. A carta[19] é dirigida ao concelho e ao juiz do Porto, a quem o monarca se diz descontente com a informação de que os cobradores da dízima não acatavam a autoridade do prelado, mandando que se lhe submetam na emergência de alguma contenda e na realização de penhoras e informando que o autoriza a fazer o mercado junto da Sé (Santa Maria), como meio de promover o povoamento intra-muros (melius populabitur propter hoc ipsum castellum).

     Mas o caso afigurava-se mais grave, pois não eram apenas os funcionários régios que desacatavam a autoridade episcopal: os burgueses queixavam-se de que o bispo não respeitava a carta de foral concedida aos seus antepassados por D. Hugo, e serviam-se desse pretexto para se recusarem a obedecer-lhe como seus vassalos[20]. D. Sancho dirimiu a questão salomonicamente, declarando nula a carta de foro, considerando “cum ex confessione ipsorum manifestissime didicissem non solum tempore huius episcopi sed eciam tempore antecessorum suorum eos per longa tempora contra ipsam cartam venisse in administrationibus sive maiordomatibus quos gratis tam ab isto episcopo qui nunc est quam a suis antecessoribus tenuerunt”, mas sentenciando, talvez contra as suas expectativas, “quod sint homines et vassalli Portugalensis ecclesie“ e que, em consequência, “ei in omnibus et per omnia sint obedientes et sui proprii homines et vassalli”. A igreja do Porto, por seu lado, “habeat in pace et quiete ipsam civitatem tanquam suam propriam, cum hiis que in carta donacionis avie mee domne Tharasie, quondam regine Portugalensis, continetur, quam cartam ego vidi et coram me legi feci et concessi et aprobavi”.

     Uma carta em que o monarca agradecia ao Bispo do Porto, D. Martinho, a maneira como tinha defendido a cidade e lhe pedia que não admitisse nela seu sobrinho, Pedro Poiares, por ser inimigo do rei, e que o mandasse prender, se ali entrasse, deverá relacionar-se com acontecimentos, de data incerta, que poderão ter ocorrido entre 1226 e 1228, e é um claro testemunho dos esforços de instrumentalização dos municípios, no meio das lutas pelo poder em que se envolveram algumas famílias no reinado de D. Sancho II[21].

     Não se ficaram por aqui os desentendimentos entre o Bispo, o Rei e os burgueses. Em 1316, o concelho queixava-se ao monarca de violências e ofensas que tinha recebido do Cabido e do Bispo do Porto e dos seus oficiais e apelava para uma carta que já lhes tinha dado o Rei[22]. A contenda prosseguiria, pelo menos até ao ano seguinte, por razão de agravamentos mútuos[23]. Ao longo do século XIV tornaram-se mais frequentes as relações directas entre o monarca e o concelho, ainda que muitas vezes o seu motivo fossem os abusos dos funcionários régios. Em 1373, tendo sido eleito, em concórdia, Bispo do Porto, Lourenço Vicente, clérigo do Rei, D. Fernando aproveitou o facto para acabar com os desentendimentos e com o interdito geral que fora posto pelo Papa, devolvendo-lhe toda a jurisdição na cidade[24].

     2. Na órbita do Porto.

     As perturbações ocorridas no interior do burgo portucalense explicarão em parte a maior afluência de novos moradores a áreas imediatas, a ele exteriores, situadas a poente e na outra margem do rio. O desenvolvimento económico que beneficiou o Porto ao longo da primeira dinastia reflectiu-se na animação de outros espaços ao redor e no amadurecimento das instituições municipais de uma série de localidades, embora os documentos alusivos não abundem. Por outro lado, para se abastecer e negociar, numa palavra, para respirar economicamente, o Porto necessitava de estar em correlação com um território mais vasto, e isso podia concretizar-se quer através do alargamento do alfoz e da área de influência do concelho, quer através das relações com os habitantes de outros municípios que surgiam na sua órbita.

     Para o alargamento do alfoz contribuiu a anexação do julgado de Melres, que ocorreu em 1369, a pedido do concelho do Porto “porque em aver boom termo a dicta cidade he per hi mais honrrada e mais avondada das cousas que aos moradores e defesa em tempo de mester (...) mando e defendo que no dicto julgado nom aia outro juiz nem vereador nem procurador do concelho nem meyrinhos nem outros officiães salvo os que forem postos na dicta cidade como dicto he ou os que forem postos no dicto julgado per os juízes e vereadores e concelho da dicta cidade” [25]. O concelho do Porto já integrava nessa época os julgados de Bouças, Gondomar, Massarelos, Maia, Refoios de Riba d’Ave, Aguiar de Sousa e Penafiel[26]. A área a que se estendia a alçada dos juízes do Porto foi alargada, em 1373, ao contencioso relativo às herdades do mosteiro de Grijó e dos fidalgos dos julgados da Feira, de Cambra, Vouga e Cabanões[27].

     Entre os novos municípios que se organizaram na órbita do Porto, podemos referir os casos mais próximos de Cedofeita, de Gaia e de Canidelo e os mais distantes de Bouças, Póvoa de Varzim, Canavezes e Aguiar de Sousa (Paredes), cada um deles com a sua especificidade.

     2.1. A poente, o abade de Cedofeita, através da carta de foro outorgada em Setembro de 1237, lançava as bases do desenvolvimento urbano da parte ocidental do Porto, ao disponibilizar as terras da herdade que o convento aí possuía e que confinava com o Douro desde o porto do Castelo, para quantos, pescadores e lavradores, aí se quisessem instalar, construir as suas casas, dedicar-se à pesca ou à agricultura[28]. No seu teor, este foral, embora com redacção própria, é tributário do do Porto, para o qual remetem explicitamente duas cláusulas, que se referem a questões de justiça e à cobrança das portagens.

     2.2. Por volta de 1284, chegou à Corte a notícia de que os moradores do julgado de Bouças, por sua própria iniciativa, se tinham organizado como um município, sem que tivessem, para o efeito, qualquer carta de El-Rei[29]. D. Dinis, por intermédio do tabelião local, convocou-os para, em data aprazada, se virem justificar na sua presença, fazendo-se acompanhar da carta ou das cartas “de foro dessa terra” para que elas pudessem ser conferidas e respeitadas. Preocupados, os moradores reuniram-se “no cabidoo de Bouças[30] que é nosso forar[31] da terra ahy hu soemos a fazer nosso Concelho” e decidiram remeter uma carta ao Rei em que, depois de “beyjar as vossas maaos e a terra dante os vossos pees muyto omildosamente” confessavam “por que carta nem foro nem cousa certaa nom avyamos a que nos tevessemos porem Senhor poemos todo na vossa maao aa vossa mercee que vos façades hy aquelo que por bem teverdes”. Não chegamos a conhecer o despacho final. Mas as amplas liberdades que, em Dezembro de 1376, foram reconhecidas aos moradores “do reguengo de Bouças”[32] levam-nos a supor que El-Rei, em troca das correspondentes direitos, lhes deve ter concedido a autonomia de que desejavam usufruir.

     2.3. Em 1308, D. Dinis concedeu aos cinquenta e dois “vezinhos de Varazim”, com suas famílias, e “a todos os outros que veerem pobrar em essa pobra”, o reguengo situado no litoral da freguesia de Argivai, com todos os seus termos “assi do mar come da terra “, com a condição de que fizessem aí uma póvoa, para a qual deviam eleger, em cada ano “seu juiz e seu moordomo e chegador”[33]. O juiz, depois de eleito, ia fazer o juramento à Chancelaria Régia, de onde trazia a carta que o habilitava ao exercício das suas funções.

     Os moradores da póvoa de Varzim tinham a obrigação de arrotear e trabalhar devidamente as terras, beneficiando do exclusivo do argaço recolhido nas praias do termo, mas, além da renda anual de duzentas e cinquenta libras, que todos pagariam in solidum, distribuídas pelas terças do ano, os únicos bens sujeitos ao pagamento de impostos eram os provenientes da actividade marítima, designadamente a pesca e o transporte e comércio de mercadorias. Previa-se, de facto, que houvesse moradores que trariam no mar barcas e baixeis com pão ou com vinho, com sal ou com sardinhas e as descarregassem no porto local, e que a este viessem ter “outras barcas ou bayxeez tanbem dos vezinhos dessa pobra come de fora parte com outras merchandias”. Na primeira hipótese pagariam sete soldos de cada barca que aí procedesse à descarga, na segunda liquidariam todos os direitos que, segundo a lei geral, pertenciam ao Rei.

     Estavam assim lançados os alicerces daquela que se tornaria, com o andar dos tempos, uma das mais importantes póvoas marítimas portuguesas.

     2.4. Nem sempre o caminho para a autonomia municipal seguiu um trajecto tão linear como o que terá ocorrido na Póvoa de Varzim. Apontamos já o caso de Bouças e agora é a ocasião de voltar os olhos para outro quadrante, dentro do aro de influência do Porto.

     Canavezes gozava, como algumas outras localidades, do privilégio de escolher o senhor de quem estaria dependente. Conforme o testemunho de um documento posterior, os “concelhos da onrra de freixo e de canaveses e de britiende e de louredo o velho“ eram honras antigas que tinham “liberdades pera tomarem senhor dos regnos de Portugal qual quiserem com consentimento dos reis e pera servirem com el o qual lhes deve guardar o seu derreito e as liberdades custumes e husos que sempre ouverom”[34]. Essas liberdades, apesar de tudo, não seriam de sempre e corresponderiam a uma caminhada que já vinha a ser feita, por todo o lado, no sentido de uma gradual ascensão ao estatuto da autonomia municipal, na qual participavam outras povoações anteriormente sujeitas a diversos níveis de dependência senhorial[35].

     Ora, em 1341, o corregedor Afonso Domingues ousou desrespeitar a tradição local, destituindo o juiz que tinha sido eleito e nomeando outro por sua iniciativa. Os moradores de Canavezes apresentaram uma veemente reclamação perante D. Afonso IV, expondo-lhe que “senpre husarom d’ elegerem seu Juiz en cada huu ano en dia de sant’ estevam o qual jura ao juiz que sai por esse tempo e que faça conprimento de dereito e de justica e en como das sentenças que esse juiz dá apellarom deles pera aqueles que esse logar de Canaveses teverom por onrra, e deles pera mjm”. El-Rei mandou ao corregedor “tenho por bem e mando vos que tiredes logo esse juiz que hy por mim posestes e tornades o juiz que por eles era posto ao estado en que estava quando di tiraste” e, entretanto, “en este comeyos veerey este fecto e livra lo ey como devo”. E essa possivelmente tornou-se a solução definitiva, embora não se colham nos documentos mais informações relativas ao assunto.

     2.5. Em 1373, Aguiar de Sousa funcionava como um município, embora nem esta designação seja então usada no documento[36]. Mas a animação da vida local era de tal ordem que suportava a manutenção da fortaleza, onde os moradores se refugiavam em momentos de perigo, e até a sua reconstrução a expensas próprias, o que supõe uma avançada consciência e organização comunitária. Fizeram, com efeito, saber ao Rei que costumavam ter um castelo muito forte, com o seu alcaide, ao qual se acolhiam quando cumpria, mas agora estava despovoado, pelo que lhe manifestavam a vontade de o refazer e sustentar à sua custa, dando, em cada ano, cem libras ao alcaide, pedindo apenas, no que obtiveram o assentimento do Rei, que, em contrapartida, lhes fosse concedida a dispensa da anúduva e dos encargos relativos ao muro da cidade do Porto.

     Das actas das Cortes de Santarém de 1331 consta, porém, um capítulo especial relativo ao concelho de Aguiar de Sousa, a que se associa o de Refoios[37], em que é visível a dificuldade de obter a contribuição das populações distribuídas pelos coutos e honras existentes no aro do município para os encargos colectivos.

     3. A margem esquerda.

     O desenvolvimento que resultou do cruzamento das vias terrestres, fluviais e marítimas, na foz do rio Douro, teve repercussões na outra margem, onde surgiu o município de Gaia e se registariam, com o andar dos tempos, outros acontecimentos originados pela mesma dinâmica.

     3.1. Na margem esquerda do Douro, foi, com efeito, outorgado, em 1255, o foral da Vila de Gaia[38], também ele influenciado, no seu teor, pelo do Porto, embora mais desenvolvido.

     A criação do município de Gaia, no reinado de D. Afonso III, tinha diversos objectivos: captar a população que abandonava o Porto, em consequência quer do incremento demográfico quer das perturbações internas do burgo, criar um contrapeso à hegemonia do Bispo local e fazer reverter para o cofre régio uma parte das receitas auferidas com o movimento portuário do rio Douro. O próprio texto do foral refere-se aos povoadores de Gaia, que moravam no burgo velho do Porto, concedendo-lhes que mantivessem o estatuto de isenção fiscal das herdades que antes aí possuíam. Também o pretor de Gaia não teria mais poderes sobre eles do que aqueles a que estavam sujeitos quando moravam no Porto.

     Acautelando o interesse mútuo e prevenindo eventuais conflitos, o foral ordenava que das embarcações de maior tonelagem que entrassem pela foz do Douro metade acostasse no porto de Gaia e a outra metade no porto da vila do Bispo. De qualquer modo, as taxas cobradas de um ou de outro lado – “omnia portagia et passagia” – seriam partidas ao meio pelos respectivos mordomos.

     3.2. Em 1288, D. Dinis emitia um novo foral a favor dos moradores do que então se chamava Burgo Velho (a par do Porto) e se passava a denominar Vila Nova de Rei[39]. Da leitura do documento deduzimos que se tratava do lugar que na tradição local é conhecido como Gaia velha ou Gaia antiga. O texto do foral decalca de tal modo o da vila de Gaia que a dado momento nos deixa perplexos: como é que o mordomo da vila do bispo, isto é, do Porto, conseguia partir ao meio com os de Vila Nova de Rei o produto das taxas das portagens e passagens, se já tinha de as partilhar com o concelho de Gaia? Afinal é o foral de Vila Nova de Rei que acaba por nos esclarecer: é que, segundo uma adenda introduzida na parte final, não se criava um novo concelho, mas apenas se reconhecia um núcleo populacional diferente, dentro do município já existente, com a salvaguarda de que todos “illi sint huuns et quod habeant unum forum et unum judicem”, devendo os lugares do mercado (açougues) situar-se no meio dos dois aglomerados e junto deles, além da feira – note-se, porém, só em 1302 El-Rei emitiria o diploma que criava a feira[40] – se fazerem os julgamentos e as reuniões do concelho: “judex judicet et faciet suum Concilium prope dictos açougues”. A única diferença passava a ser a de que todos os caminhantes tinham de fazer a passagem em Gaia, podendo fazê-la em Vila Nova de Rei apenas os respectivos moradores: “habeant passaginem pro ad corpora et suorum hominum et suarum bestiarum e pro ad suos haberes in dicta villa nova de Rey et non pro ad alios et omnes alis vadant passare ad Cayam sicut est usatum et omnes qui venerint per villam novam de Rey vadant passare ad passaginem de Gaya exceptis supranominatis”.

     Curiosamente, o foral de Vila Nova de Rei viria a servir de base para a reposição do de Gaia, cujos moradores, tendo perdido o seu, pediram ao rei D. João I que lhes desse o treslado do de Vila Nova de Rei (ou Burgo Velho, a par do Porto), que diziam feito pelo que antes tinham, ao que o rei acedeu, confirmando-lho em treslado, em 25 de Outubro de 1394[41].

     3.3. Em data imprecisa, Canidelo obteve também a sua carta de autonomia. Situada nos confins de Gaia, é referida no foral deste município, ao descrever o seu termo, mas não foi englobada nele, para continuar a ser uma quintã reguenga. Enquanto outros lugares do país conheciam os problemas da recessão demográfica e da recessão económica, a quintã atravessou um período de prosperidade, que proporcionava boas receitas ao senhorio, mercê da actividade de um grupo de povoadores apostados em tirar dela o melhor rendimento. Arrendaram-na por quinze anos e interessaram-se especialmente por desenvolver a Afurada, que era, nessa altura, um lugar da referida quintã. D. Pedro I quis dar-lhes uma recompensa e estimulá-los, criando as melhores condições para que nada os perturbasse no seu trabalho, e assim lhes concedeu, em 1360, uma carta de privilégio[42], a isentá-los não só dos encargos da vila de Gaia, isto é de fintas, talhas e sisas e do desempenho de ofícios do concelho, mas também de irem em expedições marítimas, mesmo que a frota fosse armada pelo Rei ou o almirante régio os convocasse[43].

     Desenvolvimentos ulteriores dariam origem ao novo município de Canidelo, em data imprecisa, por não conhecermos o documento que oficializou o seu nascimento, mas que é de situar antes de Novembro de 1363, mês em que o concelho já estava em funcionamento. Com efeito, nessa ocasião, em resposta a uma carta que lhe enviaram[44], a pedir autorização para fazer uma cadeia, dizia El-Rei: “vi vossa carta que me emviastes na qual me enviastes dizer que eu vos fizera merece e vos dera minha carta em que vos fiz issentos e mandey que vós pudesedes aver juiz de vosso foro e que o enlegesedes em cada huum anno e despois que o enlegesedes que fosedes a mim e vo llo confirmaria, e que nom fosedes perante o juiz de Gaya nem perante outro nehuum por nehūas cousas salvo perante nosso juiz, e que as alçadas dos fectos civēes e crimes venham perante mim, e outras cousas”. Esta nova situação levava-os a ter necessidade de uma cadeia onde pudessem guardar os malfeitores, e El-Rei, considerando a justeza da pretensão, deu ao juiz do lugar a conveniente autorização para exigir que o procurador pagasse todos os custos da nova cadeia e mandou ao corregedor que lhos recebesse em conta, nas receitas que devia cobrar para o cofre régio.

     Três anos depois, remetiam nova missiva[45] a solicitar a D. Pedro que dispensasse os juízes de irem, depois de eleitos, jurar perante a Chancelaria. Em vez disso, propunham-se comunicar a eleição, através dum intermediário, a El-Rei, para que este a ratificasse, como veio a suceder: “que esses que vos assy per mim forem confirmados por juízes jurem aos juízes que dantes elles forom, aos quaães eu mando que lhes dem juramento aos sanctos avangelhos presente huum tabaliam, que bem e direitamente obrem do dicto officio de julgado e aguardem a mim meu direito e ao poboo o seu”.

     Com outra dificuldade deparou o incipiente município, numa época em que a burocracia já ditava as suas regras: tendo o concelho jurisdição cível e crime, acontecia de se fazer apelação de alguns feitos para a Corte, a qual tinha de ir cerrada e selada como sucedia nas outras vilas e lugares do reino, pelo que requereram autorização para dispor de selo, da forma que sua majestade achasse mais conveniente, para apor nas apelações e noutras cartas e escrituras[46]. A este pedido, como seria de esperar, respondeu El-Rei, autorizando-os a ter o seu próprio selo, “o qual seia com signaães de portugal e com letras d arredor do nome desse lugar de guisa que seia bem apostado e qual deue”. O concelho teria, no entanto, uma duração efémera, extinto que foi em 6 de Abril de 1375, por carta em que D. Fernando mandava os juízes de Gaia tomar posse da jurisdição sobre a quintã de Canidelo[47].

     4. Para além do Douro.

     O território de Entre Douro e Vouga estabelecia a ligação entre a área mais setentrional do condado portucalense e a região de Coimbra, constituindo um espaço onde, a partir do século XI, se fizeram sentir as influências nortenhas, na mesma medida em que se ia afastando da órbita de Coimbra.

     No interior e próxima do raio de influência de Viseu, situava-se Banho, de que é sucedâneo o actual S. Pedro do Sul, ao qual, por intercessão do seu “tenens” para a terra de Lafões[48], D. Afonso Henriques concedeu o foral de 1152[49]. Como já observámos[50], era acentuado o pendor rural desta póvoa, bem claro no facto de predominarem os géneros agrícolas no tributo anual a que os moradores estavam sujeitos, que era fixo e referido à casa – e nisto havia uma nítida semelhança com os burgos – mas consistia num almude de vinho, outro de pão e dois dinheiros, acrescentando-se, no que respeitava aos carniceiros, um lombo de cada porco e de cada vaca e duas dinheiradas de cada carneiro. Previa-se, no entanto, uma presença significativa de mercadores na povoação, começando por se contemplar o problema da residência: para se considerar munícipe, o cidadão, depois de chegar a Banho, declarava que aí pretendia morar e pagar os tributos a que estavam sujeitos os outros moradores, não se lhe exigindo, a partir desse momento, a habitação permanente na povoação, o que se adequava ao modo de vida de um pastor ou de um comerciante, que estabelecesse numa localidade a base da sua actuação e depois circulasse através do território. Fixavam-se, aliás, as portagens a pagar pelos mercadores, quando saíssem para outras terras da jurisdição real com mercadorias, que, segundo parece, constavam predominantemente de tecidos, porque as importâncias a pagar eram determinadas em bragais. Do mesmo modo, à semelhança dos burgos já conhecidos, limitava-se ao mínimo necessário a obrigação de participar no fossado ou no apelido, que se restringia à emergência de uma invasão por gente estranha.

     A intensa senhorialização do território ao longo do século XII e especialmente do século XIII[51] não terá sido a mais favorável ao eclodir de outras instituições municipais, a que só tardiamente encontramos referências nos livros das chancelarias régias, e nenhuma delas nos esclarece sobre a data em que surgiram esses municípios.

     De todas, a mais tardia, dentro do período cronológico abrangido pelo nosso estudo, é a que se refere a Aveiro, designado como concelho em 1378, quando lhe é concedida a isenção do alfolim do sal[52]. Quatro anos antes já o concelho de Aveiro era mencionado em cartas relativas a Avelãs e a Recardães.

     Avelãs, actualmente no concelho de Anadia, tinha sido dada por termo a Aveiro, segundo o testemunho fornecido por um diploma do início de 1374, mas os seus representantes intervieram junto do Rei, que lhe restituiu o antigo estatuto: “querendo fazer graça e mercee aos homens boons e concelho do julgado d’avelaãs, temos por bem e mandamos que aiam daqui en diaante juízes jurados e meirinhos e toda jurdiçam secundo avia no tempo dos reis que ante nos forom nom embargando doações que das dictas jurdições do dicto julgado per nos fossem fectas a alguas pesoas non embargando outrossy que o dicto julgado fosse per nos dado aa villa d’aveiro por termo”[53].

     Sucedeu o mesmo, nesta altura, com Recardães, do actual concelho de Águeda[54].

     Antes dessa data deparamos com documentos relativos a Vagos, Cabanões, e Fermedo.

     O concelho de Vagos era visado numa sentença, ou, melhor dito, na composição a que se chegou no tribunal da Corte, em Junho de 1288[55]. O cenário era acentuadamente rural e envolvia quatro questões que opunham o concelho e o prestameiro: o concelho estava obrigado a ceder ao rei ou ao seu prestameiro, fosse vizinho ou não, a casa onde se devia recolher o pão do Rei; os moradores seriam obrigados a fazer carreira apenas com as bestas que não fossem de sela; os porcos deviam ser criados de modo que não causassem danos nos campos; era o concelho que tinha o direito de cobrar a portagem na ermida de Vagos.

     Aos juízes e ao concelho de Cabanões dirigiu-se, em 1292, uma carta de resolução de uma contenda sobre os direitos do pescado que os moradores haviam de dar ao Rei[56].

     Também o concelho de Fermedo foi processado em 1308[57] por se ter assenhoreado abusivamente dos melhores terrenos foreiros ao Rei que aí existiam e não os administrar devidamente: “nos melhores terrenos, que pagavam o quarto de renda, plantaram castanheiros, uveiras e outras árvores e deixaram de pagar qualquer renda; fizeram vinhas novas e o juiz deu-as a oitavo, nono ou a dízima, quando as antigas pagavam o quinto; arrotearam-se maninhos que podiam dar o quarto e o juiz arrendava-os por metade ou ainda por menos; os casais reguengos eram tratados com incúria, o que os fazia render muito menos do que aquilo que valiam”. A sentença mandou que as rendas subissem para os valores que tinham anteriormente, mesmo nos casais reguengos que se encontravam degradados por causa do desleixo dos seus detentores: “aqueles que moram en os casaaes Regaengos e os nom lavrar nem affurmuzar per ssa culpa (…) ficarom de os nom lavrar nem affrumuzar que consirrando os anos nem ao mays nem ao menos que paguem o cabedal deles poys pera sa mengua ficou de os nom lavrar nem affrutamgar”.

 

Mapa genealógico dos forais derivados do de Sahagún

 

    



 

[1] T.T., F. A., m. 3, n.o 12, fl. 75 v.º -76. Publ. em DMP-DR I, doc. n.º 53, p. 66-67.

[2] Luís Gonçalves de Azevedo, História de Portugal, vol. III, Lisboa, 1940, p. 98.

[3] É, no entanto, descabida, porque desprovida de fundamentos documentais, a suspeição sugerida quanto ao tipo das suas relações com D. Teresa.

[4] T.T., Corpo Cronológico, parte II, maço 88, doc. 9. O texto do foral do Porto consta de vários documentos do Cartório do Cabido da Sé do Porto. Cf. José Gaspar de Almeida, Inventário do Cartório do Cabido da Sé do Porto e dos Cartórios Anexos, Porto, Imprensa Portuguesa, 1935. Encontra-se publicado nos P.M.H. –Leges et Consuetudines, p. 361-362, e no Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium eorum qui in Archivo Municipali Portucalensi Asservantur Antiquissimorum. Diplomata, Chartae et Inquisitiones. Vol. I. Fasciculus I – Diplomata et Chartae, Portucale, Typis Portugalensibus, MDCCCXCIX, p. 19. 

[5] Manuel Lucas Alvarez, Tumbo A de la Catedral de Santiago, Santiago, 1998, p. 172-173. Cf. José Barreiro Somoza, El Señorio de la Iglesia de Santiago de Compostela, La Coruña, 1987, p. 255-257.

[6] Tomas Muñoz y Romero, Colección de Fueros Municipales y Cartas Pueblas, Madrid, 1847 (fac-símile, 1972 e 1978), p. 403-409.

[7] Sobre os forais de Sahagún, leia-se o que mais acima escrevemos a propósito do foral de Melgaço.

[8] Cf. Torquato Brochado de Sousa Soares, Subsídios para o Estudo da Organização Municipal da Cidade do Porto durante a Idade-Média, Barcelos, 1935, p. 31 e ss.

[9] Tomás Muñoz y Romero, Colección de Fueros Municipales y Cartas Pueblas, Madrid, 1847 (fac-simile, 1972 e 1978), p. 301-306.

[10] Ana Maria Barrero García, Los Fueros de Sahagún, «A.H.D.E.» (1982), p. 419. Para a autora, D. Hugo tomou por referência o foral de Sahagún por ser «completamente extraño al medio portugués», afirmação que é de facto injusta e incompreensível.

[11] António Martínez Coello, Don Hugo, Obispo de Oporto, en la Historia Compostelana, em Tempos e Lugares de Memória – I Congresso sobre a Diocese do Porto, 5 a 8 de Dezembro de 1998, II vol., Porto, 2000, p. 233-247.

[12] Pode ver-se a este respeito a comunicação relativa aos forais antigos de Melgaço, que apresentámos no Congresso Comemorativo do tratado de Alcanizes: António Matos Reis, Os Forais Antigos de Melgaço, terra de fronteira, em “Revista da Faculdade de Letras – História”, II série, vol. XV (Porto, 1998), p. 99-128. Cf. Ana Maria Barrero García, Los Fueros de Sahagún, «A.H.D.E.» (1982), p. 414-415.

[13] Cf. o quadro genealógico dos forais derivados de de Sahagún no fim deste capítulo.

[14] Não há qualquer referência ao juiz, porque esta função era reservada ao bispo, ou a um clérigo por ele nomeado, naturalmente com poderes quer no foro civil, quer no foro religioso. Na administração ordinária do município, o meirinho substituía o bispo, cabendo-lhe as atribuições que noutros lugares eram características do mordomo e do saião, isto é, o desempenho das funções económicas e policiais. Competia-lhe conceder terras para a plantação de vinhas, e, do mesmo modo, autorizar a construção de uma nova casa àquele que, vindo de fora, quisesse instalar-se no burgo, e cobrar-lhe o respectivo soldo, correspondente aos direitos dominiais, assim como a venda da mesma por parte de um morador que pretendesse migrar para outra localidade, podendo exercer o direito de opção, como representante do bispo. Sob pena de ser destituído do seu cargo, teria de respeitar uma certa contenção na execução de alguns actos: quando tivesse de fazer uma penhora, não podia entrar na casa dos burgueses, se no exterior existissem bens para ser penhorados, mas, se os não encontrasse, teria de fazer-se acompanhar de dois ou três homens-bons da mesma vila.

[15] Como acontecia em Sahagún, restringia-se, no entanto, o direito de dispor, por venda ou doação, da sua casa, pois era obrigatório pedir a autorização do bispo, ou do seu meirinho, e o prelado, em caso de venda, teria sempre direito de opção. Tratava-se no fundo não só de uma fórmula tendente a relembrar o poder senhorial do antístite, mas também de um mecanismo apto a evitar a intromissão, no seio da comunidade, de elementos perturbadores da paz social, e nesse aspecto correspondia a certas cláusulas que encontramos noutros forais.

[16] Com efeito, não obstante a sua índole de burgo, e porque à volta se estendiam as terras do couto, previa-se a extensão agrícola da povoação, a incrementar em dois sentidos: arroteamento de novas terras, que se tornariam propriedade do desbravador, ficando este sujeito ao pagamento de uma renda anual correspondente a um quarto do rendimento; plantação de vinhas em locais cedidos, com essa finalidade, pelo meirinho, das quais se pagaria igualmente a quarta parte do vinho produzido.

[17] Limitar-nos-emos a respigar alguns dados fundamentais nos livros das chancelarias régias. Em relação aos primórdios municipais da cidade do Porto, merece toda a atenção o estudo de Torquato de Sousa Soares, A organização municipal do Porto nos séculos XII a XIV, em História da cidade do Porto, Portucalense Editora, [1962], vol. 1, p. 303-371, e M. de Oliveira, O senhorio da cidade do Porto e as primeiras questões com os bispos, em “Lusitania Sacra”, IV, p. 55-56.

[18] Além do nome do Rei, Sancho, é o nome do Bispo, Martinho, a única referência cronológica. O episcopado de D. Martinho Pires decorreu de 1186 a 1189 e o de D. Martinho Rodrigues, de 1191 a 1234.

[19] T.T., Ch. D. Af. IV, liv. II, fl. 28 v.º; Arquivo da Câmara Municipal do Porto, Autos..., fl. 45 e 49. Publ.: C.C.L.P., Parte 2.ª, p. 47, e D.D.S., p. 314.

[20] T.T., Ch. D. Af. IV, liv. II, fl. 28 v.º; Arquivo da Câmara Municipal do Porto, Autos..., fl. 45 e 48-48 v.º. Publ.: C.C.L.P., Parte 2.ª, p. 43-44, 46 e 47, e D.D.S., p. 314-316.

[21] Cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 21, p. 180-182, v. Pereira (Pedro Rodrigues de), e vol. 22, p. 214-215, v. Poiares (D. Pedro, ou Pero de). Embora tenha existido no Porto um Bispo D. Martinho Pires (1186-1189), o deste documento deve ser D. Martinho Rodrigues (1191-1234), pois só ele era tio (irmão da mãe) de Pedro Poiares.

[22] T.T., Ch. D. Dinis, liv. III, fl. 101-102 v.º. Texto em grande parte de difícil leitura.

[23] T.T., Ch. D. Dinis, liv. III, fl. 114.

[24] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 119.

[25] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 47 v.º.

[26] António Cruz, Tempos e Caminhos, Porto, Faculdade de Letras, 1973, p. 47.

[27] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 137.

[28] T.T., Gav. 15, m. 16, n.º 14. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 627-628.

[29] T.T., Ch. D. Dinis, liv. I, fl. 233. Transcrito no Anexo Documental, com o n.º 8.

[30] Isto é, na sala do capítulo do convento de Bouças.

[31] O mesmo que foral na seguinte acepção: lugar onde se reuniam as assembleias do concelho, ou onde os juízes faziam as audiências.

[32] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 198 v.º.

[33] T.T., Ch. D. Dinis, liv. IV, fl. 45. Publicado por José Marques, Os Forais da Póvoa de Varzim e de Rates, Póvoa de Varzim, Câmara Municipal, 1991.

[34] Documento de 15 de Julho de 1382. T.T., Ch. D. Fern., liv. II, fl. 93.

[35] Leia-se o estudo que encimamos com o subtítulo “O chamamento geral”, no capítulo dedicado ao reinado de D. Afonso IV.

[36] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 138 v.º-139.

[37] Cortes de Santarém, 1331, Capítulos especiais de Lisboa. Publicado em A. H. de Oliveira Marques e outros, Cortes Portuguesas, Reinado de D. Afonso IV (1325-1357), 1984, p. 53-56.

[38] TT, Ch. Af. III, liv. 1, fls. 12-12 v.º; A.M.P., Livro Grande, fl. 72 v.º-73 v.º; A.D.P., Cabido, n.º 1673, fl. 3. Publ.: PMH, Leges et Consuetudines, pp. 662-664; Corpus Codicum, I, pp. 189-191; Forais de Gaia e Vila Nova, 1934; G. Guimarães, J. Afonso, R. Prata, O Foral de Gaia de 1255, Vila Nova de Gaia, 1983, pp. 115-119.

[39] T.T., Ch. D. Dinis, liv. I, fl. 235. Do foral de Vila Nova de Rei de 1255 existem várias cópias, transcrições e versões, nomeadamente os ms. existentes no Arquivo Distrital do Porto [Livro 1673, fl. 3; Livro 752 das Sentenças, f1s. 240 e segs. ]

[40] T.T., Ch. D. Dinis, liv. I, fl. 235.

[41] T.T., Gav. 15, m. 17, n.º 44; Ch. D. João I, liv. III, fl. 33 v.º.

[42] T.T., Ch. D. Pedro I, liv. I, fl. 44 v.º.

[43]  Nem sempre tem sido apontadas essas razões como as motivadoras da fundação deste município. Cf. Gonçalves Guimarães, O Concelho de Canidelo de D. Pedro e D. Inês, em “Gaia”, vol II (1984), p. 153-160.

[44] T.T., Ch. D. Pedro I, liv. I, fl. 91 v.º.

[45] T.T., Ch. D. Pedro I, liv. I, fl. 122-122 v.º.

[46] T.T., Ch. D. Pedro I, liv. I, fl. 122.

[47] T.T., Ch. D. Fernando I, liv. I, fl. 171.

[48] Temos notícia da reunião de um “concilium” em Lafões, no ano de 1120, para resolver uma contenda entre Mónio Viegas e o Bispo D. Gonçalo, sobre a posse de uma propriedade em Lageosa: T.T., Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 181-181 v., doc. 457; Publ.: D. P., iv, doc. 129, p. 109; L.P.S.C., III, p. 83-84. Pelo que o documento nos dá a entender, trata-se de uma assembleia ocasional, para fins judiciais, em que intervêm os homens-bons do lugar, o mordomo da terra e o juiz, nada nos concedendo o direito de concluir que existia aí um concelho com funções permanentes.

[49] T.T., F. A., m. 12, n.º 3, fl. 52 v.o; F. V., fl. 64. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 382-383, D.M.P.-I, p. 292-293.

[50] António Matos Reis, Origens dos Municípios Portugueses, 1.ª ed., Lisboa, 1991, p. 93-94 (2.ª ed., ibidem, 2002, p. 85-86) .

[51] Cf. José Mattoso, L. Krus e A. Andrade, O Castelo e a Feira. A Terra de Santa Maria nos séculos XI a XIII, Lisboa, Estampa, 1989; Idem, A Terra de Santa Maria no século XIII. Problemas e documentos, Feira, 1993. Respondendo à dúvida que José Mattoso levanta a pág. 16 desta obra, podemos esclarecer que o foral outorgado, em Janeiro de 1284, a “Veyga de terra de Sancte Marie”, que segue como paradigma o de Santa Cruz da Vilariça (TT, Ch. D. Dinis, Liv. I, fls. 88-90), tinha como destinatária a Póvoa da Veiga, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, e não qualquer localidade situada na terra da Feira. Nossa Senhora da Veiga tem uma capela nos arredores de Vila Nova de Foz Côa e é, desde o início do século XX (guerra de 1914-1918), a padroeira do concelho.

O povoamento da Veiga de Santa Maria aparece referido pela primeira vez num acordo de 1272, ainda em tempos de D. Afonso III (T.T., Ch. D. Af. III, liv. I, fl. 118). Tendo surgido uma contenda entre Numão e Santa Cruz da Vilariça, sobre a veiga de Santa Maria, localizada “contra o Douro e contra Coimbra”, os dois concelhos, representados pelos seus procuradores, chegaram a tal consenso: tanto um como o outro fariam povoar essa área e os proventos que, em resultado dessa acção, depois viessem a receber, parti-los-iam ao meio; seriam também comuns o pasto e o montádigo, incluindo o corte de lenha, exceptuando-se o porto onde estava a barca, assim como a barca, seus direitos e pertenças, e as “carrarias” ou caminhos de acesso do mesmo porto, nas quais nada teria o concelho de Numão, sendo todas do de Santa Cruz. O rei confirmou o acordo, ressalvando os direitos que lhe pertenciam na barca e no lugar.

A João Armyno, nomeado pelo Rei povoador da Veiga de Santa Maria, dirige-se uma carta de 1282, relativa a uma contenda levada ao tribunal da Corte pelos povoadores de Vale de Boi, por motivo de herdamentos que foram retirados do seu termo para a póvoa da Veiga (T.T., Ch. D. Dinis, Liv. I, fl. 53-53 v.º), cuja demarcação tinha sido feita pelos juízes e tabeliães de Numão e Marialva, os dois concelhos que confrontavam com a localidade (Vale de Boi corresponde à freguesia actualmente designada como de Santo Amaro, situada a oeste do concelho de Vila Nova de Foz Côa).

A Veiga de Santa Maria veio a ser integrada no termo de Vila Nova de Foz Côa, pelo foral de 1299, renovado em 1314, com alguns acréscimos, especialmente relativos à construção das muralhas. O paradigma então citado é o de Torre de Moncorvo, sucedânea, como noutro lugar referimos, de Santa Cruz da Vilariça, por transferência da respectiva cabeça. O apagamento da Póvoa da Veiga em favor de Vila Nova de Foz Côa pode ter resultado da simples falta de concretização do projecto inicial, de uma transferência, como a de Santa Cruz da Vilariça para Torre de Moncorvo, ou de uma anexação. Certo é que o termo de uma coincide, pelo menos parcialmente, com o da outra, como se pode ver nos forais mencionados, onde se citam:

– Veiga, 1284: “Termini vero dicte vile <de Veiga> de terra Sancte Marie quos ego supraditus Dominus Rex do et concedo vobis populatoribus ipsius popule sunt sicut dividit per Palam de Çayam deinde quomodo partit per Paradam Fernandi Menendi et deinde quomodo vadit per capud de Proviçeyros et deinde quomodo vadit per Vale de Seixo et deinde quomodo se vadit ad fontem de Feeytal et deinde quomodo se vadit ad Palam de Ussa et deinde quomodo se vadit ad caput de Sanbibe aquis vertentibus sicut dividit cum hominibus de Azinate et cum Aldeya Nova et deinde quomodo vadit per viam vellam ad Fontem Gomam et deinde quomodo vadit per venam de Dorio”;

– Vila Nova de Foz Côa, 1299: “(...) a veiga de Santa Maria com seu termho e com Aziante e com a aldeya nova como parte com Moxagata dereitamente a Coa pela vea a fondo como entra en doyro”;

– Vila Nova de Foz Côa, 1314: “dou e outorgo a foro pera todo senpre a vos pobradores da mha pobra de Vila Nova de Fozcoa a veiga de Santa Maria com seu termho e com azanhate e con na Aldeya Nova como parte polo Val do boy e des i como vay pela portela da Anevya des i como parte com moxagata dereitamente a côa pola vēa a fundo como entra en doiro (...) e o meu Regaengo da Veiga de Santa Maria”.

[52] T.T., Ch. D. Fern., liv. II, fl. 35 v.º.

[53] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 140 v.º.

[54] T.T., Ch. D. Fern., liv. I, fl. 140 v.º.

[55] T.T., Ch. D. Dinis, liv. I, fl. 232-232 v.º.

[56] T.T., Ch. D. Dinis, liv. II, fl. 39.

[57] T.T., Ch. D. Dinis, liv. II, fl. 65.