sábado, 30 de outubro de 2021

3.6 – Beira Litoral

     1. Coimbra e os seus antecedentes moçárabes.

   

    Em meados do século XI iniciava-se uma importante fase da reconquista peninsular: consolidada a supremacia sobre o vale do Douro, com Fernando I de Castela e Leão, os cristãos avançavam para sul, estabelecendo o seu domínio sobre Coimbra, em 1064.  

     A conquista da cidade revestiu-se de um significado emblemático, não só pela aquisição territorial que representava e pelo seu valor estratégico, na perspectiva de outras campanhas, mas também pela integração que proporcionou de importantes contributos no caldo de cultura em que se originou a identidade portuguesa.

     O seu governo, bem como o do território situado entre o Douro e o Mondego, em cuja recuperação tivera um papel decisivo, foi entregue ao alvazil Sisnando, moçárabe nascido em Tentúgal, que vivera na corte de Sevilha e depois se passara para a de Leão.

     1.1. O progresso das conquistas meridionais continuou com Afonso VI de Castela (1072-1109), em cujo reinado a fronteira com os muçulmanos foi empurrada para a linha do Tejo. Em Abril de 1085, Afonso VI confirmou aos moradores de Coimbra os costumes que Sisnando lhes dera, assim como a posse das terras distribuídas pelo alvazil[1], firmando um pacto com os representantes da cidade, que podemos considerar como o primeiro foral concedido a Coimbra. Esse pacto foi renovado no verão de 1093, pouco antes de Santarém, Lisboa e Sintra caírem sob o domínio cristão[2].

     Marcado pela tolerância e pela convivência entre cristãos (moçárabes) e muçulmanos e pelo respeito do papel reservado aos representantes da comunidade, o governo de Sisnando foi benéfico para Coimbra: “ille etenim populavit eam bene, et firmiter tenuit eam contra omnes gentes et dedit illis tales consuetudines ut populassent sicut melius potuissent, et possedissent hereditates illi et filii sui seu etiam et omnis progenies eorum”[3].

     Os costumes ou consuetudines adoptados na cidade não ficaram registados por escrito, mas será possível conhecê-los em parte através leitura da “consuetudinis cartam”, redigida certamente sob a sua influência e concedida a Santarém, em 1095[4]. A carta de Santarém, se por um lado, contém uma série de cláusulas com disposições influenciadas pela tradição leonesa, de que se encontra o melhor exemplo no foral de S. João da Pesqueira, reflecte, ao mesmo tempo, as transformações que se verificaram no meio urbano, designadamente a integração de cristãos, judeus e mouros na população da cidade, assim como a inevitável diferenciação social, pois entre os habitantes sobressaem os “maiores civitatis” (também referidos como pertencentes ao grupo dos “meliorum civitatis”), que serão em primeiro lugar os “milites”, que permaneciam em Santarém com o objectivo de proteger a cidade e dispunham de cavalo e de armadura (lorica) fornecidos ou pagos pelo monarca[5].

     Também Coimbra albergava um leque diversificado de habitantes: cristãos, judeus e mouros. As principais funções do governo competiam aos “maiores” ou “melhores”. Adosinda Teles, ainda em 1121, dizia no seu testamento “Ego predicta Adosinda que hanc cartam facere iussi in conventu nobilium confirmo et hoc signum facio”[6].

     Seguindo a tradição muçulmana, Sisnando atribuíra aos “maiores natu Colimbriae”, que viviam na cidade, “vilas ad populandum” no termo rural que circundava a cidade. Este panorama corresponde à divisão do espaço em qaryas e rahals (aldeias e domínios rurais), que encontramos noutros territórios de Al-Andaluz, isto é, da Espanha muçulmana[7].

     Sisnando foi um acérrimo defensor da tradição moçárabe, opondo-se, até à morte, ocorrida em 1092, à introdução em Coimbra da liturgia romana, que constituía o aspecto mais visível da reforma gregoriana, conotada na prática com as influências francesas que acompanharam os primeiros tempos da reconquista. Só depois da sua morte foi possível a entrada em Coimbra de um bispo de origem nortenha, seguidor do rito romano[8]. Pouco tempo depois, Afonso VI, que se dirigira para o sul com o objectivo de resgatar as terras reocupadas pelos muçulmanos, colocou à frente do condado um militar francês, D. Raimundo da Borgonha, seu genro, e, como manifesta afirmação de poder, procedeu à reconfirmação da carta de 1085[9]. A tradição moçárabe deixaria, no entanto, as suas marcas, no campo religioso, e o studium do Bispo Paterno e do seu colaborador Martinho Simões fazia de Coimbra o primeiro centro cultural de um país prestes a emergir, do mesmo modo que o conhecimento do direito, baseado no Liber Judicum, constituiria a base de uma tradição jurídica, que até dispensou nos forais da região a profusão de cláusulas normativas que abundavam nos de outras áreas geográficas.

     1.2. Ao findar a primeira década do século XII, a inquietação instalou-se entre os conimbricenses. Os sarracenos, que se tinham apoderado de Santarém, eram agora uma ameaça para a cidade, enquanto o mais alto responsável pela defesa do território se encontrava ausente, ocupado com outros problemas. A circunstância foi aproveitada pelos moçárabes mais ferrenhos para instigar a população a revoltar-se contra as autoridades.

     Para responder a esta situação, o Conde D. Henrique dirigiu-se a Sátão, onde se encontrava no início de Maio de 1111, e a partir daí encetou as diligências necessárias para debelar a crise que afectava a cidade.

     Controlada a situação e confessando-se pessoalmente bem acolhido (habebo gratum quod collegistis nos), a 26 de Maio de 1111, o Conde D. Henrique outorgava o novo foral, em cuja assinatura estiveram presentes os seus mais directos colaboradores e os membross do concelho de Coimbra, o que evidencia o seu carácter pactual: “Qui presentes fuerunt omnem scolam comitis et omnem concilium Colimbrie”. O documento pretendia ser uma resposta aos mais graves problemas que então se punham e que tinham provocado o levantamento dos habitantes da cidade. Através das soluções que se apresentaram, podemos fazer o elenco desses problemas:

–  membros da alta nobreza (infanções) tinham-se instalado e adquirido propriedades em Coimbra mas não respeitavam os costumes da cidade, nem contribuíam para o serviço colectivo, por se considerarem privilegiados;

–  cavaleiros chegados de fora da cidade violavam o domicílio dos moradores;

–  Coimbra tinha sida dada em préstamo (em alcavala);

–  tinham sido nomeados alcaide e juizes não naturais de Coimbra e fora lançada uma colecta a pretexto da sua nomeação;

–  os governantes tinham autorizado ou pelo menos consentido que os porteiros e os guardas da cidade cobrassem tributos aos moradores: portagens, alcavalas, comedorias (cibaria), corveias (facere senaram), demasiadas carreagens exigidas aos almocreves, jugada aos agricultores mais pobres (que trabalhavam com ibiçãos ou jumentos), maninhádego;

–  concretamente, dois magnates, Mónio Barroso e Ebraldo, por essas ou outras razões, tornaram-se malqueridos na cidade.

     Estes problemas resultaram, ao que se infere, de uma ofensiva do partido nortenho ou francês, em que predominavam os homens colocados nos pontos chaves da administração pelos condes D. Raimundo e D. Henrique. Para apaziguar os ânimos, D. Henrique teve de acabar com as prepotências dos altos funcionários, de anular as suas medidas extorsionistas, repondo as isenções fiscais que remontavam aos tempos do alvazil Sisnando, introduzindo a moderação na cobrança de alguns tributos[10] e proibindo as exorbitâncias das autoridades policiais, assim como as arbitrariedades na administração da justiça:

–  o governo da cidade passava a depender directamente do poder régio ou condal;

–  o concelho seria o órgão fundamental do governo da cidade, competindo-lhe o julgamento de todos os delitos mais graves;

–  as autoridades militares e judiciais, o alcaide e o juiz, seriam escolhidos entre os moradores;

–  a autoridade policial, o saião, deveria fazer a participação, ao concelho, dos delitos que implicassem a aplicação de coimas, e não poderia, por sua livre iniciativa, violar o domicílio dos moradores, para fazer qualquer espécie de penhora.

     1.3. Os parcos elementos que o foral de 1111 fornece acerca da sociedade conimbricence, revelam a persistência da estrutura moçárabe, agora ajustada a uma época de guerra mais premente. Os moradores continuavam a dividir-se fundamentalmente em dois grandes grupos: os maiores e os menores. No entanto, os maiores designavam-se agora como cavaleiros (milites), e os menores eram os peões (pedites), na sua maior parte simples cultivadores da terra.

     Os cavaleiros possuíam os seus domínios rurais, equivalentes às rahals muçulmanas, indispensáveis para a sua própria sobrevivência e para a sustentação dos cavalos com que participavam na guerra; estavam isentos do pagamento de tributos, porque impendia sobre eles a função de defender a comunidade, mantendo o inimigo à distância e provocando-lhe danos para o enfraquecer, actividade de que até podiam colher proveito individual, com a obtenção de despojos de guerra. As principais actividades lucrativas a que se dedicavam os cavaleiros eram o fossado, a azaria[11] e a azaga, de cujo produto deviam pagar um quinto, das duas primeiras, e metade, da última. Aos cavaleiros, para efeitos de imunidades e isenções, equiparavam-se os clérigos.

     Os peões (pedites), que perante o fisco se consideravam tributários, cultivavam as suas próprias herdades, de que pagavam jugada[12]. Era possível a passagem de uma a outra categoria, porque os peões, se tivessem os meios necessários para adquirir cavalo, podiam tornar-se cavaleiros e beneficiar do mesmo estatuto fiscal. Regista-se a existência de uma outra categoria de jugários, constituída pelos que trabalhavam as herdades dos cavaleiros e não intervinham directamente na vida pública, onde eram representados pelos seus amos, de que dependiam até em assuntos de justiça. Havia também almocreves e haveria mesteirais, a que o foral de 1111 ainda se não refere.

     1.4. A organização do território obedecia ao esquema herdado da ocupação árabe e da governação de Sisnando, com a diferença de que agora se acentuava mais a presença dos militares. Para além da cidade, o espaço rural repartia-se “tam in villis quam in munitionibus”, o que logo recorda as qaryas e rahals[13], as aldeias e os domínios rurais, ou as kurâs e as hisns[14], isto é, as vilas e as fortalezas da era muçulmana[15].

     1.5. Será necessário esperar pelo “Decretum” ou Posturas Municipais de 1145[16] para obter informações mais detalhadas acerca da organização e funcionamento do concelho. Já noutra ocasião tivemos ocasião de sublinhar o interesse deste documento para a histórica económica[17]. O objectivo dos homens-bons (“ab omnibus baronibus bonis”) de Coimbra, tanto os maiores como os menores, que se reuniram em assembleia, em 16 de Junho de 1145, era fundamentalmente o de regular o funcionamento do mercado local. Estabeleceram normas e preços a praticar, mas, para velar pela sua observância, tinham de recorrer aos funcionários do concelho. O primeiro de todos era o almotacé, que devia ser um homem-bom, não aceitar “ofrecione”, como garantia da sua isenção[18], competindo-lhe velar pelo que se passava na cidade (“qui custodiat civitatem”), aferir as medidas, aprovar as formas para o fabrico da telha e fixar o preço dos artigos não tabelados, especialmente do peixe e do marisco, numa palavra, zelar pelo abastecimento e bom funcionamento do mercado, assim como inspeccionar a qualidade e o preço das mercadorias. Se este cargo já antes existia em Coimbra, pois, como o nome confirma, é de origem muçulmana, a partir de agora adquiria especial relevo, e, com o andar dos tempos, seria criado também nos outros municípios. A par do almotacé, e tendo o juiz e o concelho no topo da pirâmide hierárquica, eram importantes outros cargos públicos: o alcaide, o adail (adael)[19], o saião, o mordomo do alcaide e o mordomo da vila.

     2. As influências de Coimbra.

     Compreende-se que a influência de Coimbra se tenha estendido a uma vasta região situada ente o Douro e o Tejo, acentuando-se especialmente nos vales do rio Mondego e dos seus afluentes, especialmente o Dão. No entanto, não foi tanta como por vezes se acredita ou cedo foi suplantada, aos menos parcialmente, por outras de diferente origem.

     No Baixo Mondego, Tentúgal, Soure e Montemor-o-Velho são indissociáveis da tradição coimbrã. No Alto Mondego, onde podemos mencionar os exemplos de Santa Comba e de Azurara, fez-se também sentir a influência de Coimbra mas nota-se, especialmente em Tavares, sem excluir outras áreas, como Arganil, uma abertura maior a contactos externos, particularmente do norte do território.

     Está relacionada com o início da grande campanha de expansão meridional, que teve lugar a partir de 1136, o reforço da linha do Mondego, a leste, com a outorga do foral de Seia, e a sul com o de Miranda do Corvo[20] e o de Penela[21], que mais tarde se comunicaria a Avelar e Almofala.

     Seia desfrutava de um passado mais rico, que lhe proporcionara uma situação de relevo no contexto regional, fazendo um caminho próprio, independente da cidade de Coimbra, embora não escasseiem paralelismos, que se explicam com a existência de certas matrizes comuns.

     À ofensiva contra os sarracenos, traduzida numa série de campanhas que tiveram como principais marcos a reconquista de Santarém e Lisboa, e, para além do Tejo, a de Évora e de Beja, a que se juntaram outras localidades alentejanas, seguiu-se, na área de que nos estamos a ocupar, um programa de povoamento e de organização do território traduzido na outorga de forais, entre os quais se destacam, num momento inicial, o de Germanelo[22], de cronologia imprecisa, e, de par com a construção do castelo, o de Leiria, datado de 1142[23], a que se acrescentará o de Sintra, em 1154[24].

     2.1. A dinâmica municipal.

     Revela-se de interesse a comparação entre o contexto em que estas localidades obtiveram a sua carta de foro, assim como o tipo de organização que adoptaram, a composição da sociedade local e o estatuto fiscal dos seus membros. Neles encontraremos aspectos comuns e outros que estão relacionados com o seu enquadramento geográfico, com o objectivo que se propunham ou com os interesses dos outorgantes, desde o monarca ao Bispo de Coimbra, aos mosteiros ou aos grandes terratenentes.

     Embora saibamos que todas estas cartas de foro têm como antepassados remotos os forais de Coimbra e de Soure, de 1111, não é fácil – exceptuando os do grupo de Tomar – e é em regra impossível estabelecer-lhes uma linha de filiação directa. Salvo alguns casos – Miranda do Corvo para Arouce, Coimbra para Tomar e seus derivados –, a sua geração não se deu através da reprodução de modelos escritos, diplomas já existentes ou simples formulários tabeliónicos, mas por via oral e da memória, de um modo bastante livre, daí resultando que em forais com redacções muito diversas se registem as mesmas realidades, ainda que à primeira vista pareça que as respectivas cláusulas nada ou pouco têm de comum. A intervenção dos “vizinhos” ou dos seus representantes na elaboração do foral deu lugar à introdução de algumas peculiaridades. Por essa via, diversos forais outorgados a povoações a sul de Coimbra fazem eco, em certas passagens, de normas e de costumes adoptados mais a norte. Acusam, desse modo, a diversificada procedência geográfica de um significativo número dos povoadores, vindos dos concelhos situados na zona leste do actual distrito viseense, cuja mobilidade estava com frequência prevista nas respectivas cartas de foro, quando se garantia aos “vizinhos” a conservação do respectivo estatuto social e fiscal, mesmo que se transferissem para outra localidade, por vezes restringindo-se intencionalmente essa deslocação ao avanço para a frente.

     2.1.1. Tendo-se desenvolvido na órbita de Coimbra, Tentúgal, Soure e Montemor-o-Velho eram, desde velhos tempos, as mais importantes povoações do Baixo Mondego. Na margem direita ou na margem esquerda, cada um destes povoados corresponderia a uma hisn ou fortaleza onde se refugiavam, em momentos de perigo, os camponeses das qaryas ou aldeias que matizavam os campos dos arredores.

     Tentúgal já em 1108 recebera uma carta em que lhe eram concedidos “omnes foros quos in Colimbrie currerint” [25]. Em 1111, no mês seguinte ao de Coimbra, e tomando-o por modelo, com pequenas variantes[26], certamente no contexto da mesma campanha de apaziguamento empreendida por D. Henrique, foi redigido o foral de Soure[27].

     É possível que um foral idêntico, se não com o mesmo texto, tenha sido, na mesma data, outorgado a Montemor-o-Velho: com efeito, no acto da subscrição do foral de Soure, após a lista dos confirmantes e antes do notário, regista-se a participação do concelho de Montemor: “Et concilio de Monte Maior et de Saurio et scola comitis”. A instituição municipal, por conseguinte, já funcionaria[28], sendo de presumir a existência de um foral, embora dele não haja qualquer notícia, talvez porque tenha sido precocemente destruído, após a outorga de nova carta, em 1212.

     2.1.2. Em 1102, o Abade do mosteiro de Lorvão, cuja relação com o Bispo de Coimbra é conhecida, assinava uma “carta moris” destinada aos povoadores das vilas de Santa Comba e Treixedo[29], situadas no território de Viseu[30]. Dois monges tinham sido encarregados pelo abade de as repovoar com agricultores. O documento apresenta-se como um pacto ou “fori conventio” entre o mosteiro e os povoadores, que cedo se organizaram, à semelhança de outras comunidades da região, e acordaram mutuamente nesta “carta moris”[31].

     A carta de foro de Azurara[32], que centralizava uma vasta área entre o Dão e o Mondego, terá sido outorgada pelo Conde D. Henrique entre os anos de 1109 e 1112[33].

     O foral de Tavares aparece datado de 1114 mas, apresentando-se como subscrito pelo Conde D. Henrique e por D. Teresa, deverá ter sido elaborado um pouco antes[34], e a indicação de que o seu castelo se situava “in stremo” é complementada com a informação de que “est illo castro inter mauros et christianos”, colocando-nos no contexto do afrontamento que na região se viveu na segunda década do século XII.

     Em 1114 o Bispo de Coimbra D. Gonçalo Pais concedia aos moradores de Arganil uma carta de foro conhecida através de um aditamento feito ao Livro Preto da Sé de Coimbra[35] no século XIII, circunstância que naturalmente nos impede de saber até que ponto o texto recebido corresponderá ao original, sendo clara a existência de adendas ou de interpolações, embora se torne difícil distinguir os elementos primitivos dos acréscimos posteriores. O próprio foral adquiriu um carácter dinâmico, com as mudanças de discurso, que correspondem à evolução do processo negocial, a evidenciar o carácter pactual do documento: na maior parte do texto é o bispo que fala, a enunciar as obrigações e os direitos dos habitantes de Arganil, mas estes, em dada altura, tomam a palavra para se comprometerem colectivamente a acrescentar ao tributo da jugada um sesteiro por cada boi, em troca do reconhecimento do direito a uma intervenção decisiva na eleição do alcaide.

     2.1.3. Ocupando Seia uma posição de grande interesse estratégico, é natural que tenha sofrido com as vicissitudes daí resultantes e que em consequência conhecesse mudanças no estatuto que regulava as relações dos habitantes entre si e com os mais altos poderes.

     Seia, cujo concelho se deu já como presente no acto em que o Bispo D. Gonçalo Pais outorgou o foral de Arganil, que regista, como vimos, a data de 1114[36], foi doada por D. Teresa, em 24 de Maio de 1122, “com os seus castelos e vilas”, ao conde Fernando Peres[37]. Sofreu, anos depois, uma investida dos inimigos de D. Afonso Henriques, segundo o testemunho de um documento de 16 de Maio de 1131[38], a qual se deveria inserir no quadro da resistência que os antigos partidários de D. Teresa ofereceram ao Infante e, na parte sul do território, se prolongou para além dos acontecimentos de 1128[39]. Debelada a rebelião, o foral concedido a Seia[40], em Maio de 1136, enquadra-se na sequência destes acontecimentos, não só como um acto destinado a significar o domínio sobre o território, mas sobretudo como um modo de fazer os ajustamentos exigidos pelas novas realidades, tendo em conta as efectivas correlações de forças, num espaço onde as tenências de certas localidades que, na sua maior parte, tinham recebido um foral de D. Teresa, pertenceram aos “traidores”, enquanto o povo tomara partido pelo Infante: Sátão, Viseu, Sernancelhe, Ferreira de Aves. Essas e outras vicissitudes ter-se-ão reflectido no conteúdo do próprio documento, o que nos obriga a lê-lo com a maior atenção[41].

     2.1.4. O foral de Miranda do Corvo[42] é do mesmo ano do foral de Seia, mas as circunstâncias da outorga apresentam-se diferentes. Enquanto Seia era uma povoação de velhas tradições, habitada por uma população diversificada, Miranda é um município ainda em projecto, que se deseja incrementar à volta do castelo. Embora considere, em perspectiva, uma futura comunidade, o foral tem como destinatário imediato um indivíduo, de nome Uzberto, talvez o alcaide local, e a sua esposa.

     Foral com texto idêntico ao de Miranda do Corvo foi outorgado a Arouce[43], em Abril de 1151, e, muito mais tarde, a Pedrógão Grande[44], em Fevereiro de 1206.

     Ao contrário de Miranda do Corvo, à data da outorga do seu foral[45], em 1137, Penela[46] tinha um castelo, que se encontrava habitado por uma comunidade. Depois de Miranda do Corvo, era um dos pontos mais avançados na linha da reconquista, e a reorganização local assinala os propósitos de D. Afonso Henriques de consolidar a defesa da região de Coimbra e, mais ainda, de estabelecer bases de apoio para continuar a penetração em território sarraceno.

     O foral de Penela serviu de paradigma, em relação a “rellego, alcaidaria e cooimhas”, ao que Martim Anes, em 1221, outorgaria aos moradores de Avelar e Almofala[47], no actual concelho de Ansião.

     2.1.5. A conquista de Leiria constituiu uma etapa decisiva na marcha para o sul empreendida por D. Afonso Henriques e pelos seus homens. Quase ao mesmo tempo, outorgava-se o foral, iniciava-se a construção do castelo e a reorganização eclesiástica do território. No foral, datado de 1142[48], encontramos cláusulas que repetem ora o de Coimbra, ora o de Seia ou o de Sernancelhe, o de Ferreira de Aves ou o de Miranda do Corvo, e não faltam as ressonâncias de alguns costumes seguidos mais a norte (foral de Numão), que reencontraremos no foral de Évora e seus derivados, de par com disposições originais, que, se não correspondem a factos novos, traduzem outro modo de encarar as mesmas realidades.

     Tem múltiplos pontos de contacto com o de Leiria o foral outorgado, pouco tempo antes ou depois, aos moradores do castelo de Germanelo[49], e as diferenças entre ambos devem-se naturalmente ao facto de que, enquanto em Leiria se pretendia incrementar uma povoação de mais ampla projecção no futuro, em Germanelo apenas havia a preocupação de garantir um número de moradores suficiente para guarnecer o castelo.

     2.1.6. O foral outorgado aos povoadores de Sintra, em 1154[50], seguiu a tradição do de Leiria, seu antepassado mais próximo, até na multiplicidade de influências que acusa, representando mesmo o desenvolvimento máximo alcançado até esta época pela tradição ligada ao foral de Coimbra, de 1111, numa direcção independente da que conduziu aos forais de Tomar (1162 e 1174) e aos de Lisboa, Santarém e Coimbra (1179), dos quais nos ocuparemos oportunamente.

     No número dos confirmantes do foral de Sintra contam-se, entre outros, os “princeps” de Coimbra, Santarém e Lisboa, além do arcediago desta última, sinal de que já se reorganizara a administração civil e eclesiástica da futura capital, embora o seu novo foral só aparecesse dali a vinte e cinco anos. Possivelmente Lisboa (como talvez Santarém) já antes se governaria por normas que deviam ser equivalentes às que foram dadas a Sintra e que eventualmente constariam de alguma carta de foro. Esta carta terá servido de modelo para o diploma de Sintra: deste modo se torna compreensível que uma povoação de apenas trinta moradores recebesse um foral tão elaborado, que ultrapassava em alguns aspectos as necessidades locais e mesmo as exigências de uma gestão realista das realidades quotidianas, designadamente quando se tomavam disposições adequadas a um elevado número de habitantes, repartidos por vários escalões sociais, que exerciam cargos e profissões variadas, e se falava em atribuir prémios aos cavaleiros (milites) que bem servissem o seu alcaide ou se aludia aos súbditos que os mesmos podiam ter dentro ou fora do castelo. Parece, aliás, que o melhor testemunho da existência de uma carta de foro em Lisboa está na primeira cláusula da parte dispositiva, em que se diz “damus vobis XXX.ª casales cum suis hereditatibus in Ulixbona”, onde o nome de Lisboa era desnecessário e supérfluo, numa zona geográfica tão vasta, para localizar uma povoação tão conhecida como Sintra, mas possivelmente resultou de um lapso do escriba, ao apoiar-se num formulário que dizia respeito à cidade das margens do Tejo.

     2.2. A organização municipal.

     Não conhecendo a existência de instituições urbanas de base electiva e muito menos uma organização municipal como a que se afirmava na Europa cristã[51], o sistema islâmico apoiava-se num conjunto de redes que uniam os indivíduos através de laços familiares ou de interesses. O governo das cidades, tal como o dos mais consistentes aglomerados rurais utilizava como interlocutores um conjunto de notáveis (shuyûkh), que representavam as comunidades[52]. Esta organização – cujos contornos ainda permanecem bastante obscuros – reflectiu-se nas povoações que estiveram sob o domínio muçulmano, embora os dados de que dispomos não sejam abundantes.

     Entre os notáveis teria sido escolhido o grupo dos “meos fideles maiores”, constituído pelos alvazis D. Mendo, D. Belitto e Cides Fredaliz[53], que D. Sisnando encarregou de fazerem as delimitações da herdade de S. Martinho [do] Bispo doada, em 1080, ao abade Pedro, um moçárabe fugido de terras sob o domínio muçulmano.

     O foral concedido por Afonso VI a Toledo, em 1101, previa que a resolução dos problemas mais importantes dependesse de um conselho formado pelo alcaide que estava à frente da cidade e exercia as funções de juiz, pelo alvazil e por outros dez “ex melioribus civitatis, inter mozarabes et castellanos"[54].

     2.2.1. Os “maiores” ou “melhores”, que tinham responsabilidades na cidade de Coimbra aparecem referidos na carta de 1085, tal como sucede, mas com mais clareza, no caso de Santarém, em 1095.  

     Na carta de aforamento mais tarde (em 1104) concedida aos agricultores de S. Martinho do Bispo, D. Maurício Burdino, reconhecia a autoridade dos rectores Colimbrie, para avaliarem as herdades que viessem a ser postas à venda, ou dos maiores civitatis[55] para obrigar a cumprir o contrato estabelecido entre o bispo e os agricultores[56].

     Em 1111, este colégio de “maiores” é substituído pelo concilium, cujos membros, tal como o juiz e o alcaide, deviam ser eleitos pelos habitantes de Coimbra, “maioribus et minoribus cuiuscumque ordinis”.

     2.2.2. A organização de Coimbra, particularmente a partir de 1111, serviu de modelo aos concelhos de Tentúgal, de Soure e de Montemor, no Baixo Mondego. No acto da subscrição do foral de Soure, após a lista dos confirmantes e antes do notário, regista-se a participação do concelho de Montemor, apesar de, como referimos, não se conhecer o respectivo foral: “Et concilio de Monte Maior et de Saurio (...).

     No Alto Mondego, os governantes ou juizes de Santa Comba e de Treixedo tornaram-se responsáveis e depositários da respectiva carta moris: "Hos nos supradicti prior laurbanensis cenobii et fratres simul secundum temporis qualitatem statuimus atque confirmandum rectoribus terre, sive iudicibus stabiliter tradidimus”.

     Já o foral de Azurara não faz clara referência a qualquer órgão de administração ou de governo local, embora a sua existência e o seu funcionamento estejam implícitos, inclusivamente, na disposição de que “totos homines inter ribulos Adon et Mondego respondeant ad Zurara cum servicio et cum foro”. A carta, aliás, foi dirigida às “populationes” de Azurara, como se elas constituíssem uma comunidade dotada de personalidade jurídica, uma vez que estabelece o privilégio de couto e a consequente proibição de qualquer estranho aí entrar em perseguição de servos fugitivos ou de homicidas ou com outros fins, sinal da existência de um foro judicial próprio. E, mais ainda, em Azurara julgavam-se os delitos aí cometidos e pagavam-se as respectivas coimas: “calumpnia que ibi exierit per directum iudicium, mediam partem leyxe pro anima de comite”.

     A carência de uma tradição local tornou necessário que o foral de Tavares estabelecesse algumas normas que contemplassem especialmente a administração da justiça e a aplicação de coimas, designadamente em relação aos delitos mais graves, e é através delas que temos conhecimento da existência e do funcionamento do concelho, a que presidia o juiz, coadjuvado, na manutenção da ordem pública, pelo saião.

     2.2.3. Embora com alguns pontos de contacto com Coimbra, Seia fruiu de uma história própria, podendo a sua localização ter contribuído para minorar as influências do tempo em que viveu sob o domínio muçulmano, assim como a falta de uma tradição local mais arreigada explica a maior extensão normativa da sua carta. O foral de 1136 reconhecia a estreita dependência, especialmente no âmbito das obrigações fiscais, em relação ao senhor ou ao rei, normalmente representado pelo mordomo ou serviçal. Era, porém, o concelho que garantia a paz[57] e a ordem interna, competindo-lhe, como uma das suas funções mais importantes, a eficiente administração da justiça[58]. Os julgamentos, pelo menos os dos crimes mais graves, eram feitos pelo juiz e quatro homens-bons: “IIII.or homines cum suo alcaide aut iudice”[59]. O foral explicitava, com toda a clareza, que a nomeação dos funcionários da justiça, concretamente, do juiz e do saião, era da competência do concelho[60].

     2.2.4. As circunstâncias em que Miranda do Corvo se encontrava à data de outorga do foral, em 1136 – município ainda incipiente, o foral tem como destinatário imediato um indivíduo, de nome Uzberto – explicam a não existência neste diploma de algumas cláusulas presentes noutros forais, como, por exemplo, as relativas ao concelho, porque este órgão ainda não se tinha constituído. No entanto estava-se a caminho da sua constituição, porque se mencionam os boni homini, a que de antemão se confia o encargo de proceder à “exquisitio”, isto é, de averiguar a verdade sobre factos delituosos, e se faz referência ao juiz e ao saião, ao estabelecer as coimas aplicáveis a quem os agredisse.

     De modo diferente, ao outorgar o foral de Penela[61], em 1137, o monarca criava um novo município, servindo-se de uma povoação já existente, fazendo doação do castro ou castelo e do território circundante aos seus habitantes e acompanhando-a da concessão de “optimis foris”. Prevenindo a hipótese de algum morador não aceitar a nova situação, o foral estipulava claramente a obrigatoriedade de acatar as decisões do concelho, e quem as não quisesse acatar devia vender os bens e abandonar a comunidade: “si aliquis homo non voluerit intrare in iudicium vicinorum suorum vendat illud quod habuerit totum ibi et exeat de nostro castelo”. A propósito dos delitos não previstos, o foral diz que “faciant iudicium inter se et conveniant se bene”. A índole castrense da povoação poderá justificar o facto de que as funções de juiz e alcaide se concentrassem na mesma pessoa, como dá a entender uma das cláusulas: “Homo qui fuerit ad domum vicinorum suorum sine alcaide vel sine iudice det LX solidos”. Com o alcaide colaboravam o saião e o mordomo, este proibido de entrar nos lagares. Claramente influenciado pelo de Penela, o foral de Avelar e Almofala, de 1221, refere-se à actuação colegial dos homens-bons, presentes inclusivamente no acto da outorga, assim como ao juiz e ao mordomo. Em todos os aspectos é uma boa amostra das influências que viriam a ter no futuro os paradigmas elaborados na região de Coimbra.

     O predomínio das funções castrenses terá contribuído para que em Germanelo, tal como em Penela, e possivelmente em Seia, a mais importante autoridade local fosse o alcaide – o da época até assina o documento – e que se reduzisse ao mínimo o elenco das coimas (apenas as de homicídio e rouso, cujos quantitativos, porém, não se fixavam), cometendo-se aos moradores o encargo de sanarem entre si os problemas relacionados com outros delitos menores: quando houver feridas, aquele que as tiver provocado “intret in manibus sui comparis qui feridas iniuste passus est”, e, na ocorrência de furto, o autor do delito “ibi solvat calumniam eius”.

     2.2.5. Em Leiria, cujo foral data de 1142, ao nível da organização administrativa local nada encontramos de específico: a vida municipal assentava no concelho dos homens-bons (o termo concelho nunca aparece, mas o grupo dos homens-bons é referido como a entidade a quem competia proferir o iudicium ou sentença), o saião actuava entre os moradores, e existia um alcaide, a quem expressamente cabiam atribuições ligadas à acção militar (receber os cavalos apreendidos aos sarracenos e distribuí-los pelos moradores, dando um aos que o tinham perdido e dispondo dos outros para criar novos cavaleiros), mas não se faz referência a um juiz, presumindo-se que as respectivas funções judiciais que ultrapassassem o âmbito jurisdicional do concelho dos homens-bons competiriam também ao alcaide. Distribuía-se pelo rei e pelo concelho, como em Coimbra, o encargo da vigilância nas atalaias, enquanto os assuntos do foro eclesiástico eram confiados ao mosteiro de Santa Cruz, na década anterior fundado em Coimbra.

     2.2.6. D. Afonso Henriques doou um casal a cada um dos trinta povoadores do castelo de Sintra e concedeu-lhes, em 1154, uma carta de foro que era das mais extensas outorgadas até ao momento. Na parte final, uma cláusula elucida-nos sobre a ponderada política de organização do território então seguida: os arredores de Sintra estão ainda por povoar: o rei dará um casal, com as respectivas herdades, a cada um dos moradores do castelo, quando decidir povoar os arrabaldes. Este pormenor é suficiente para demonstrar que, numa data em que a população não abundava, pelo menos em certas áreas geográficas, o monarca se preocupava em fixar ou autorizar que se fixassem homens não ao acaso ou indiscriminadamente mas segundo uma política previamente definida, onde a sua presença fosse considerada mais oportuna, em ordem à defesa e ao desenvolvimento do território. Segundo o foral, a vida municipal baseava-se no funcionamento do concilio constituído pelos boni homini da localidade[62]. A este concelho, que velava pela ordem interna – verificava, por exemplo, se os criminosos se emendavam – se recorria para fazer justiça[63], assim como para efectuar operações de compra e venda. Pertencia ao concelho escolher, entre os vizinhos, o juiz e o saião e exonerá-los[64]. O alcaide exercia funções específicas de âmbito exclusivamente militar. Recomendava-se-lhe que desse, em cada ano, um prémio (“donum bonum”) aos militares que bem servissem.

     2.3. O regime tributário.

     O tributo fundamental a que estavam obrigados os agricultores, que constituíam a maioria da população, era a jugada. Consistia esta no pagamento de uma importância por cada junta ou jugo de bois empregados no trabalho[65], o que naturalmente correspondia à dimensão das propriedades, independentemente do rendimento que delas se pudesse obter[66]. Daí derivou o nome com que era designado o tributo, sendo mais raras outras designações, como a de “cornaria”, relacionada, ao que parece, com os atributos físicos dos animais (os cornos). A jugada é a forma de tributação adoptada no vale do Mondego e em terras, situadas a sul[67], que permaneceram durante mais longo tempo sob o domínio muçulmano. Para Robert Durand deve-se à permanência ou ao ressurgir das influências jurídicas romanas, não sendo de ignorar que as disposições do código teodosiano relativas à jugatio foram retomadas pela Lex Romana Visigothorum, também chamada Breviarium Alarici, e que a jugada está melhor representada naquelas regiões onde a permanência moçárabe mais resistiu às influências muçulmanas[68]. No entanto compreende-se a simpatia da administração muçulmana por esta forma de tributação, pois só ela garantia proventos certos ao fim do ano, independentemente das intempéries ou das variações climáticas ou de outras perturbações, e dispensava a existência de um batalhão de funcionários para assistir à medição das colheitas, nas eiras e lagares, como sucedia nas terras cristãs, mais a norte.

     2.3.1. Não são claros os forais de Coimbra ao especificar os quantitativos englobados pela jugada, que, pelo foral de 1111, sabemos terem sido reduzidos para metade: “pedites de ratione quam solebant dare de cibaria dent medietatem per quartario de XVI.m alqueires”. Além da jugada, os agricultores estavam onerados com outros tributos, entre os quais vinha em primeiro lugar a percentagem de um oitavo sobre o vinho e sobre o linho e a madeira. Esta maneira de os fixar – por ratio ou percentagem – induz-nos a crer que se tratava de tributos mais recentes do que a jugada. Poderíamos ser tentados a confirmar esta conclusão com a posição adoptada pela religião islâmica em relação ao vinho[69], mas é sabido que os muçulmanos da Península Ibérica, exceptuados alguns momentos de fanatismo, não foram rigorosos em seguir as prescrições do Islão nesta matéria[70], permitindo que os cristãos o produzissem e vendessem nas próprias cidades, onde não lhes faltavam clientes entre os seguidores de Maomé[71], e os poetas andaluzes não deixaram de cantar as delícias de uma taça de vinho, em versos delicados, como estes de Almutâmide, natural de Beja, o mais famoso rei das taifas peninsulares, que foi governador de Silves e subiu ao tono de Sevilha[72]:

     Bebi vinho que derramava luz

     enquanto a noite estendia

     o seu manto de trevas.

     Os moinhos de água e as azenhas, cuja introdução é costume atribuir aos muçulmanos[73], tinham substituído a moagem manual feita em casa e o cereal neles moído era tributado com o pagamento de um de catorze avos. Os almocreves, cuja função era imprescindível para o aprovisionamento de certos bens, tinham de prestar um serviço por ano e os próprios cavaleiros de Coimbra, isentos em relação aos rendimentos agrícolas, pagavam uma taxa dos proventos de guerra, que desse modo se apresentava como uma actividade lucrativa: metade da azaga e um quinto da azaria e do fossado. Em Seia voltaremos a encontrar a taxa de um quinto da azaria e em Germanelo, de um quinto “de azaga de fosado”.

     Os estudiosos não têm sido unânimes quanto a estes e a outros vocábulos que aparecem nos documentos[74]. O facto de lhes corresponderem taxas diferentes afasta logo à partida a tentação de lhes atribuir o mesmo significado. Uma vez que o nosso intento não é o de aprofundar a discussão sobre a etimologia e a semântica das referidas palavras, contentamo-nos em registar as conclusões a que chegámos.

     Azaga derivará da palavra árabe “al-sâqa” (rectaguarda de um exército) e muito provavelmente refere-se aos despojos recolhidos após a batalha: terá originado a palavra moderna saque, que se aplica em circunstâncias semelhantes.

     Azaria corresponderá ao árabe “al-sariâ” (corpo de tropas, especialmente de cavalaria) e aplicar-se-ia às rápidas incursões no território inimigo. Também se pode encontrar a sua origem em “al-ghazwa”, incursão que em geral tinha como objectivo a captura de gado; estas incursões, por norma, far-se-iam sem mortes, mas, quando deparassem com resistência por parte do inimigo, podiam degenerar em efusão de sangue e até no rapto de mulheres e crianças. De uma ou de outra terá derivado a palavra razia, que faz parte do nosso vocabulário actual.

     Enquanto a azaga e a azaria eram campanhas bélicas executadas pelos militares, de um modo geral, a cavalo, o fossado seria, na sua origem, uma actividade em que participava ou podia participar a peonagem e o seu raio de acção limitar-se-ia às áreas mais próximas, até onde, segundo referem muitos forais, num só dia se pudesse ir e voltar.

     2.3.2. No Baixo Mondego, não havia diferenças no estatuto tributário em relação à cidade de Coimbra, se exceptuarmos aqueles particulares que por causa do seu valor insignificante nem chegaram a ser referidos, como a madeira e a lenha, as azenhas e os almocreves.

     No Alto Mondego a jugada registava algumas variantes. Em Santa Comba designava-se como cibaria e era constituída por dois quarteiros[75] de pão, em partes iguais de trigo, milho e centeio, com a particularidade de a contabilização se fazer não por junta mas por cada boi que o agricultor possuísse. Em Azurara, a jugada era de um moio de pão terciado, por cada jugo, ou de dois quarteiros para os agricultores que apenas tivessem um boi. Em Seia, era igualmente de um moio e compunha-se de um quarteiro de trigo, outro de centeio e dois de milho.

     Em Penacova, cujo foral foi outorgado por D. Sancho I, em 1192, o sistema era mais complexo: um moio por um ou dois jugos e, acima desse número de jugos, um quarteiro; presumindo que o agricultor que apenas possuísse um boi se associaria a outro, na altura das lavradas e de outros trabalhos, os dois em conjunto pagariam um moio[76]; até os simples cavões eram obrigados a pagar uma teiga de cereal.

     Mais para sul, em Arganil, foi reduzida a metade, isto é, a dois quarteiros por jugo ou a um quarteiro por boi, mas todos eram obrigados a pagar, se mais não fosse, um arrátel de cereal, quando não tivessem qualquer animal para o trabalho. Um quarteiro por boi era também a jugada que se pagava em Miranda do Corvo, e depois em Arouce e Pedrógão.

     Em Leiria ainda se adoptaria o sistema da jugada, mas desta vez o tributo era reduzido para a importância de um sesteiro por cada boi, de modo que por cada jugo apenas se pagaria o terço de um moio.

     Em Tavares, embora lhe chamassem jugada, o tributo era fixo, consistindo em três sesteiros (meio moio, o mesmo que dois quarteiros) de pão, independentemente do número de bois que os agricultores possuíssem. O facto de várias localidades terem sido povoadas ou guarnecidas com populações migradas de terras situadas mais a norte, explicará as diferenças existentes no sistema adoptado na fixação do tributo, embora se lhe continue a dar o nome de jugada. Assim acontece também em Penela, onde a jugada era sempre de dois quarteiros, qualquer que fosse o número de bois que o lavrador possuísse.

     Em Sintra o tributo era de um sesteiro para quem possuísse um boi e de um quarteiro para quem possuísse dois ou mais.

     Em Avelar e Almofala, embora noutros aspectos se siga o foral de Penela, os agricultores pagavam um oitavo da colheita. Em Abiul a percentagem fixada pelo abade de Lorvão era de um décimo.

     A dependência do sistema de fixação dos tributos em relação à procedência dos moradores é expressamente referida no foral de Germanelo, onde os peões que aí quiserem habitar “si alias hereditates alicubi habuerint, si fuerint de iugada dent suam iugadam, et si fuerint de ratione dent suam rationem”.

     2.3.3. Como em Coimbra, os agricultores das outras povoações situadas nos vales do Mondego e dos seus afluentes ou na sua área de influência, além da jugada, estavam onerados com o pagamento de outros tributos, que incidiam sobre a cultura do vinho, do linho, por vezes dos legumes, e com maior frequência sobre a caça grossa, isto é ao cervo e ao porco bravo, sobre a caça miúda por tempo prolongado, visando os coelhos, sobre a actividade recolectora do mel e da cera, e muito raramente sobre outros géneros ou actividades, como a pesca e a almocrevaria.

     Estes tributos eram fixados normalmente em termos proporcionais em relação à respectiva colheita, por ratio ou percentagem, o que, segundo já referimos, nos induz a considerá-los de introdução mais recente do que a jugada.

      De todos esses tributos, o do vinho era quase sempre referido em primeiro lugar, e oscilava entre um oitavo (em Coimbra, em Alvelar e Almofala), um nono (em Miranda do Corvo, Arouce e Pedrógão) e um décimo (Tentúgal, Soure, Montemor-o-Velho, Azurara da Beira, Arganil e Seia), por vezes com o acréscimo da taxa de lagarádiga (Coimbra e Baixo Mondego) e com a fixação de um tempo de carência, desde a plantação da vinha (cinco anos, em Arganil) ou quando a colheita atingisse certos valores (cinco quinais). Em Tavares, Leiria e Sintra, o tributo era de um puçal, desde que a colheita fosse de cinco quinais, e em Penela pagavam-se dois puçais nas mesmas circunstâncias.

     Em alguns destes municípios, a tributação do linho tinha por base a percentagem: um oitavo em Coimbra (como o vinho, a madeira e a lenha), e em Avelar; um décimo em Azurara e em Seia. Noutros estabelecia-se o tributo fixo de um manelo, simplesmente (Miranda do Corvo), de (desde?) três vergas (Arganil) ou desde que o cultivador colhesse quatro ou mais manelos[77].

     Em Santa Comba, se o morador cultivasse legumes, presume-se que em quantidade, pagaria também um alqueire[78].

     Em Arganil encontramos tributos que parecem de origem duriense: a carne e a parada, constituída por um alqueire de pão e um almude de cevada; sem constituir novidade em relação à Beira interior, os moradores de Avelar e Almofala deveriam pagar uma fogaça de dois alqueires e um capão, por altura das colheitas.

     Tinha uma grande importância a recolha do mel e da cera. Ainda se não divulgara a cultura do açúcar e a iluminação fazia-se principalmente à custa do azeite e da cera. Assim se explica a importância que a recolha do mel e da cera tinha na economia de algumas localidades, cujo clima e demais condições naturais favoreciam a sua existência. Assim os meleiros pagavam em Tavares meia canada de mel; em Seia, uma canada de mel ou uma libra de cera; em Miranda do Corvo, Arouce e Pedrógão, um arrátel de cera ou meio cubelo[79] de mel; em Penela, um alqueire de mel ou um arrátel de cera; em Leiria, um almude de mel e uma libra de cera; meio alqueire de mel, em Sintra.

     A caça grossa era normalmente taxada com o pagamento de um lombo por cada veado[80], em Santa Comba, Tavares, Azurara, Seia, Miranda do Corvo, Penela, Leiria, ou, raramente, de meio lombo, em Arganil e Sintra; e por cada porco (javali), quatro costas, em Tavares, Seia, Miranda do Corvo; apenas duas, em Azurara e Penela; ou uma, em Sintra.

     A caça miúda por tempo prolongado era tributada num coelho, com referência a circunstâncias variadas, o que denuncia o seu carácter relativamente arbitrário: por 15 dias, por ano, desde 1 ou desde 3 noites no monte, por cada 15 coelhos, por cada caçador, com a referência ou não de que se devia incluir a pele: por exemplo, em Seia o tributo era de 2 coelhos com a pele, desde 3 noites no monte, e em Sintra, de 3 coelhos por ano, também com a pele. A análise dos tributos pagos pela caça permite-nos concluir que, nesta como noutras áreas do país, a actividade cinegética podia ser exercida em regime de tempo integral, como ocupação exclusiva, por longos períodos, ou apenas como uma ocupação parcial, em acumulação com alguma outra, designadamente com um mester ou com a agricultura.

     Em centros urbanos mais desenvolvidos como Coimbra, Leiria e Sintra, havia tributos que impendiam sobre a almocrevaria (Coimbra), os mercadores ou os mesteres (Seia, Sintra) e ainda sobre o transporte e a venda de peixe (Leiria).

     2.4. A sociedade.

     Na velha sociedade coimbrã, os moradores distribuíam-se pelo menos por dois escalões sociais, designados genericamente como os maiores e os menores. Tinham sido já “omnes maiores natu colimbriae” que em 1085 solicitaram ao imperador D. Afonso VI a confirmação da distribuição de terras e dos costumes estabelecidos pelo Conde D. Sisnando. O foral de 1111 dirigia-se a todos aqueles: “qui Colimbrie estis maioribus et minoribus cuiuscumque ordinis sitis”, mas, para efeitos práticos, a partir dessa data, a distinção que se estabelecia era entre os milites ou cavaleiros, os tributários ou agricultores livres e os jugários que trabalhavam nas herdades dos primeiros. Em 1145 a assembleia que se reuniu para regular o funcionamento do mercado local era constituídaab omnibus baronibus bonis tam maioribus quam minoribus civitatis Colimbrie”. Embora sem esquecer as antigas distinções entre maiores e menores, esta frase revela que no contexto municipal todos se reduzem a uma só categoria, os homens-bons (baronibus bonis).

     2.4.1. A organização adoptada em Coimbra era seguida pelos antigos municípios do Baixo Mondego, cuja população, fixada no tempo do alvazil D. Sisnando, se foi adaptando gradualmente às novas circunstâncias.

     Ao contrário dessas localidades, Tavares não sentia o peso da tradição, porque os moradores eram gente nova, atraída por uma política de concessão de “bonos foros per ubi pobulent illum”. Entre esses povoadores contavam-se especialmente servos e legítimos, isto é, pessoas cuja liberdade estava limitada por laços de dependência pessoal e que “volent proinde ingenuos esse”, isto é, desejavam adquirir o estatuto de homens livres, de modo a não correrem mais o risco de serem capturados e reduzidos novamente à escravidão: “de suis foribus per ubi ambulent et non exeant de illis”.

     A sociedade de Arganil repartia-se entre peões e cavaleiros, com privilégios e obrigações semelhantes aos habitantes de outras localidades da mesma região, mas para fruir dos privilégios dos cavaleiros era suficiente possuir cavalo ou simplesmente acompanhar o senhor no fossado, mesmo com uma simples égua sem albarda!

     Em Miranda do Corvo, a sociedade local escalonava-se fundamentalmente em duas grandes categorias de pessoas, os agricole (agricultores) e os milites (cavaleiros)[81], a que se acrescentavam os sagitárii ou frecheiros, que se equiparavam aos cavaleiros.

     Em Penela, a sociedade local era integrada principalmente por milites (cavaleiros) e jugários. Os privilégios dos cavaleiros não diferiam praticamente dos que usufruíam nos municípios acima estudados[82]; era deles que dependiam, inclusive no foro judicial, os homens que viviam e trabalhavam dentro das suas herdades. Mas, enquanto noutros lugares o peão que comprasse cavalo obtinha o estatuto de cavaleiro, o foral de Penela estabelecia, mais do que isso, a obrigatoriedade de o agricultor que possuísse mais de dois jugos de bois, dez ovelhas, duas vacas e um leito com seus panos, adquirir cavalo[83].

     2.4.2. No mais alto escalão da sociedade municipal de Seia, encontravam-se os cavaleiros, repartidos em duas categorias: os que beneficiavam de algum préstamo e os que, não tendo essa possibilidade, viviam, naturalmente, dos seus próprios haveres, estando isentos de todo o fossado, que não fosse o de Maio, e do apelido. Tal como em Coimbra, o foral de Seia atribuía aos cavaleiros a jurisdição exclusiva, na área das respectivas terras, sobre os seus dependentes, especialmente em assuntos de justiça[84]. Esta prerrogativa fazia com que, no escalão a seguir aos cavaleiros, se encontrassem dois níveis distintos de peões: os homens dos cavaleiros, que dependiam apenas dos respectivos senhores[85], e os homens do rei. Havia também os cavões, mais pobres, que, não tendo gado para fazer a lavoura, não pagavam tributos sobre os rendimentos agrícolas, e pessoas ainda mais indigentes, os míseros, que viviam das gratificações que recebiam pela execução de tarefas modestas, como acarretar feixes de lenha.

     Pioneiro em preocupações sociais, o foral de Seia providenciava para que se não praticasse a opressão dos mais humildes e especialmente das mulheres, naturalmente mais desamparadas, proibindo que lhes tomassem os animais ou as forçassem a vender os bens e obrigando a pagar-lhes qualquer serviço que prestassem, como, por exemplo, a vigilância dos gados a cargo do mordomo.

     A escravidão deixava de ser um ferrete transmitido com o sangue, pois o foral determinava que os mancipii (mancebos ou serviçais) solteiros fossem de quem quisessem, isto é, que se pusessem ao serviço de algum cavaleiro ou que se mantivessem inteiramente livres, isto é, apenas dependentes da autoridade régia e municipal. A obrigação de pagar jugada, imposta aos homens desta categoria que possuíssem herdades, implicava a proibição de se colocarem sob a dependência de qualquer outro domínio senhorial.

     Numa economia em desenvolvimento, o foral de Seia foi um dos primeiros a referir-se expressamente aos mesteirais, designadamente aos oleiros e aos ferreiros.

     A existência de mouros era um facto e, se algumas cláusulas do foral a eles se referiam quando eram cativos ou andavam em fuga, numa passagem que se deverá considerar como uma adenda mais recente eram tratados como vizinhos, a quem se reconhecia inclusivamente o direito de dispor dos seus bens em testamento.

     2.4.3. Na sociedade de Leiria, segundo o foral de 1142, deparamos com os mesmos níveis em que, nas áreas a norte, os moradores se escalonavam, com seu estatuto próprio – peões e cavaleiros (milites) – com a possibilidade de os primeiros ascenderem à categoria superior, se o desejassem, como já se dizia em Sernancelhe, mediante a aquisição de cavalo. E sendo Leiria uma cidade, estimulava-se a fixação de mercadores, concedendo-lhes a isenção de portagens nas terras do rei que frequentassem nas suas deslocações, à semelhança do que estabelecia a confirmação do foral de Guimarães, em 1128.  Constitui, porém, novidade, pelo menos a nível das referências documentais, a distinção entre duas qualidades de cavaleiros: os cavaleiros per naturam (por natureza), que hereditariamente adquiriam essa categoria e a mantinham, com o respectivo estatuto jurídico e fiscal, mesmo que perdessem o cavalo, se, por falta de meios, o não conseguissem substituir; e os que, sendo cavaleiros não per naturam, deviam essa categoria ao facto de possuírem cavalo, pelo que se o perdessem, sem o conseguirem substituir no prazo de dois anos, regressavam ao anterior estatuto de tributários.

     Entretanto, uma inovação que, no âmbito das regalias municipais, fez a sua aparição no foral de Numão, em 1130, e só em 1152 se voltaria a repetir no de Freixo de Espada Cinta, encontrou repercussões no foral de Leiria, em 1154: se nos municípios durienses, para efeitos de justiça, tal como viria a suceder nos outros forais aparentados com o de Numão e com o de Évora e seus derivados, se equiparavam os cavaleiros aos infanções e os peões aos cavaleiros do resto da país, o cavaleiro (miles) ou o peão de Leiria eram considerados como os “melhores” na respectiva categoria, em todos os lugares sob jurisdição régia, isto é, as suas declarações ou os seus testemunhos prevaleciam sobre os outros, porque se passavam a considerar de qualidade superior, em igualdade de circunstâncias.

     2.4.4. O foral de Sintra, de 1154, foi o que, nas expressões utilizadas, prolongou até uma época mais tardia as reminiscências do período muçulmano, que, no entanto, se deverão limitar às simples palavras. Entre elas, a insistente referência ao príncipe (princeps) pode ter um significado predominantemente formal e jurídico, reduzindo-se a uma simples fórmula utilizada para designar a estância superior do poder. O mesmo se poderá observar a propósito da estratificação da sociedade em maiores e menores de várias ordens, a quem o outorgante se dirige no preâmbulo. Na prática, esta indicação genérica, em meados do século XII, não traduzirá mais do que a existência real, ou prevista, de cavaleiros (milites), peões (agricultores e caçadores), súbditos de cavaleiros, clérigos, mesteirais e comerciantes. Os peões que adquirissem cavalo entravam “in honore”, isto é, no estatuto de isenção fiscal dos militares. O foral admitia a hipótese da existência de dependentes (subditos) na casa dos outros moradores (em princípio, dos cavaleiros), no castelo ou nas herdades, e dispunha que não estivessem sujeitos a qualquer foro, designadamente ao pagamento de impostos e coimas, senão para com os donos das herdades onde habitassem.

     2.5. A justiça.

     É do conhecimento geral que as populações ibéricas sob o domínio muçulmano foram as que melhor conservaram até uma época mais tardia as antigas tradições culturais, especialmente religiosas e jurídicas. Este facto explica-se, por um lado, com o seu isolamento em relação ao restante mundo cristão, e, por outro, com a preocupação em manter a sua identidade cultural e a integridade da sua fé no meio do islamismo que as rodeava. É também sabido que, salvo alguns excepções mais tardias, os ocupantes muçulmanos se aperceberam de que era mais vantajoso, na perspectiva da paz interna e das finanças públicas, deixar que os cristãos, excluído o exercício do proselitismo, continuassem a praticar livremente a sua religião e a governar-se pelas suas leis, desde que pagassem os tributos que lhes eram impostos.

     2.5.1. Foi a situação de tolerância vivida na maior parte do tempo nos lugares sob o domínio muçulmano que fez com que o direito visigótico, designadamente o Liber Judicum, continuasse a ser seguido nos meios moçárabes, constituindo, por exemplo, a base de uma tradição jurídica, que até dispensou a profusão de cláusulas normativas que abundam nos forais de outras áreas geográficas.

     Esta situação explica a geral inexistência de normas jurídicas e especialmente de disposições penais nos antigos forais de Coimbra e do Médio e Baixo Mondego. Em localidades onde essa tradição não existia, porque povoadas com homens que migraram de terras mais a norte, apareceram os primeiros conjuntos de normas de âmbito penal.

     2.5.2. O facto de se tratar de uma população sem tradições locais justificará que, ao contrário do que sucedia com outros municípios de várias localidades da região de Coimbra, a carta de foro de Tavares incluísse o elenco das coimas com que seriam penalizados os moradores pelos principais delitos. Situação bastante semelhante deve ter sido a de Arganil. A única penalidade especificada no foral de Azurara destinava-se a sancionar o estatuto de couto, prevendo a pesada multa de mil e quinhentos moios para os transgressores, ou, na falta de pagamento, especialmente quando se tratasse da perseguição a homicidas ou a servos que ali buscavam a liberdade, a perda das mãos ou dos olhos. Em Miranda do Corvo, concelho a nascer, ainda sem tradição, o foral continha um sucinto rol de normas jurídicas e penais, e de modo semelhante acontecia em Penela e em Germanelo.

     2.5.3. Conhecemos o foral de Seia numa versão que, em relação ao texto inicial[86], deve ter beneficiado de várias interpolações e adendas, que determinaram o seu maior afastamento em relação aos vários forais surgidos na órbita de Coimbra, embora a povoação tivesse conhecido igualmente a sujeição ao domínio muçulmano. Tanto podem atribuir-se à religiosidade islâmica como à caridade cristã as medidas pioneiras do foral de Seia, orientadas para a protecção dos mais fracos, especialmente dos pobres, das mulheres, dos órfãos e das viúvas, dos mesteirais, dos agricultores mais modestos e dos guardadores do gado a cargo do mordomo[87].

     A integração no domínio portucalense das sociedades de antiga origem existentes no vale do Mondego e seus arredores provocou uma mudança na atitude dos nossos governantes para com as comunidades instaladas nos novos municípios, onde, inicialmente, com a preocupação de evitar conflitos, e talvez por influência dos costumes francos, especialmente nos burgos, se procurou evitar a existência de várias classes sociais. A pacífica coabitação entre maiores e menores, e logo a seguir, entre peões e cavaleiros, de que especialmente Coimbra e o Baixo Mondego forneceram o exemplo, fez com que cedo se ultrapassasse o radicalismo inicial, mesmo nas terras do norte, como sucedeu aquando da confirmação do foral de Guimarães.

     Também no termo de Seia existia uma sociedade mista, responsável, no entanto, por alguns problemas a que o foral procurou dar resposta, especialmente no que diz respeito ao funcionamento de duas justiças diferentes no mesmo espaço: a do concelho, dita “do rei”, e a dos cavaleiros. Quando houvesse um litígio entre um “homem de cavaleiro” e um “homem do rei”, se o primeiro fosse condenado, a coima era dividida a meio, entre o senhor e o rei. A justiça régia, representada pelo meirinho, apenas devassaria as herdades dos cavaleiros quando, após um delito grave, de homicídio ou rouso, se reclamasse justiça do respectivo senhor e este se recusasse a fazê-la. Em perseguição de ladrão de casa ou de “cortinha”, dividir-se-ia a coima a meio, entre o concelho e o dono da herdade onde o criminoso se acoitara. Longe de se reportar a uma tradição enraizada, a tabela das coimas reflecte as fases da elaboração deste foral:: por exemplo, a pena prevista num caso de homicídio, inicialmente de cem moios de cereal, foi depois elevada para quinhentos moios; a maior parte das coimas era fixada em géneros (em moios ou quarteiros de cereal, ou em bragal), mas as feridas com armas (lança, espada, alfanje) fabricadas para esse fim eram penalizadas com uma importância monetária, o que indicia a interpolação mais tardia desta cláusula.

     2.5.4. Tendo herdado, entre outras, as influências da tradição coimbrã, o foral de Leiria é parco em normas sobre os procedimentos jurídicos. A tabela das coimas contempla os crimes que expressamente se pretendiam evitar, dando-nos uma ideia da gravidade que lhes era atribuída. Algumas aproximam-se dos valores fixados no foral de Viseu, outras do de Seia. A previsão de uma coima para quem faltasse ao apelido encontra-se já no foral de Ferreira de Aves. A omissão da coima referente ao rouso não constituiria problema, dada a norma geral de a equiparar ao homicídio. Note-se a transposição para esta área da prática do recurso à luta entre os contendores, para resolver problemas judiciais, que apenas tínhamos encontrado na Beira interior e em seguida voltaremos a encontrar em Sintra.

     Embora outorgado a uma localidade com história própria no período islâmico, à qual não foram insensíveis os geógrafos e os poetas muçulmanos, foi um trajecto semelhante ao de Leiria o que conduziu ao foral outorgado aos moradores de Sintra “maioribus sive minoribus cuiuscumque ordinis”.

     Tratando-se de uma carta de foro que pressupunha a anterior tradição da área coimbrã, presumivelmente decalcada sobre um anterior foral de Lisboa, compreende-se que dela façam parte certas normas jurídicas que, pelas razões apontadas, não encontramos em Coimbra e representam uma séria preocupação com a justiça, até com uma certa modernidade, entre as quais se delineiam as que sublinham o papel insubstituível do concelho na sua administração e na manutenção da paz interna[88] e as que o libertam, através de disposições pragmáticas, do encargo de resolver as pequenas querelas[89].

 

 

    




 

[1] T.T., Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 7 v.º-8 v.º. Nesta e noutras citações que se seguem, utilizamos Rocha Madahil, Liv. Preto da Sé de Coimbra, Universidade de Coimbra, vol. I, 1977.

[2] T.T., Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 8–  8 v.º.

[3] T.T., Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 7–8.

[4] T.T., Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 1.

[5] Mais em pormenor, cf. António Matos Reis, Origens dos Municípios Portugueses, Lisboa, 1991, p. 40-42 (2.ª ed., ibidem, 2002, p. 43-44).

[6] T.T., Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 117-117 v.º.

[7] Cf. Pierre Guichard, El problema de la existencia de estructuras de tipo “feudal”en la sociedad de al-Andalus (El ejemplo de la región valenciana), em Pierre Bonassie, Tomas N. Bisson, Reyna Pastor, Pierre Guichard y otros, Estructuras feudales y feudalismo en el mundo mediterraneo. Barcelona, Editorial Critica, 1984, p. 130.

[8] Cf. Gérard Pradalié, Les faux de la Cathédrale et la crise au début du XII.e siècle, em Mélanges de la Casa Velazquez, 10 (1974), p. 77-97. Resumido por José Mattoso, Fragmentos de uma composição medieval, Lisboa, Editorial Estampa, 1987, p. 26-27.

[9] T.T., Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 8-8 v.º.

[10] Assim, reduzia-se a metade o tributo da jugada, paga em cereais, estabelecendo-se a medida a utilizar (“Pedites de ratione quam solebant dare de cibaria dent medietatem per quartario de XVI.m alqueires sine brachio posito et tabula”); fixava-se num oitavo o imposto a pagar pelo vinho, assim como pelo linho e pela madeira ou pela lenha que se vendesse na cidade; ainda em relação ao vinho, limitava-se a um almude o imposto de lagarádiga, quando a produção fosse inferior aos cinco “quinales”, e daí para cima, à quarta parte da colheita; pela moagem, nas azenhas, pagava-se a décima quarta parte do ceral moído.

[11] Cf . o n.º 2.3.1.

[12] Curiosamente, o foral abre uma excepção para o regime fiscal dos agricultores da aldeia de Bolão, que, em vez de serem tributados segundo o critério da jugada (ou cornaria), deviam pagar uma ratio ou percentagem, que consistia na quarta parte da colheita. A explicação deverá encontrar-se no facto de se tratar de um reguengo, povoado certamente com agricultores imigrados do norte do território.

[13] Cf. Paul Guichard, l.c., p. 128-132.

[14] Pierre Guichard, Communautés et échanges, em Jean-Claude Garcin et alii, États, Sociétés et Cultures du Monde Musulman Médiéval (X.e-XV.e siècle), tomo 3, Paris, Presses Universitaires de France, 2000, p. 60-62.

[15] Sobre a organização do espaço sob o domínio do Islão, no sul de Portugal, cf. Stéphane Boisselier, Naissance d’une Identité Portugaise, Lisboa, Imprensa Nacional –  Casa da Moeda, 1999, p. 23-85. É possível definir a natureza e estabelecer as relações hierarquicas entre kurâ (p. 47), madina, hisn (p. 62) e iqlim (p. 53), qarya (p. 71) e day’a . É necessário prestar atenção à evolução material e funcional, que acompanha a evolução semântica: a nossa aldeia não corresponde à al-day’a, que originou o nome, mas à al-qarya muçulmana (p. 145 e ss.).

[16] T.T., Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 221-222.  Publicado em P.M.H.-L.C., p. 743-744, Livro Preto da Sé de Coimbra, III, p. 260-263, e J. Pinto Loureiro, Forais de Coimbra, Coimbra, 1940, p. 54-58. É possível que o concelho de Coimbra tenha sido influenciado pelo regulamento de taxas que D. Diogo Gelmires, “com a justiça e os cidadãos da cidade”, deu a Santiago de Compostela, em 1133.  (Cf. Esp. Sagrada, tomo XX, p. 535).

[17] António Matos Reis, Origens dos Municípios Portugueses. Lisboa, Livros Horizonte, 1991, p. 148-152, ou 2.ª ed., 2001, p. 121-124.

[18] Como remuneração pela sua actividade, tal como o juiz, receberia “talem dineiratam qualis per totam vitam currerit de carne et de piscato”.

[19] Para evitar que se afastassem das suas funções específicas, devido à ambição dos negócios, não era permitido aos adaís o exercício do comércio (“addael nullus sit emptor ullius rei ad gananciam”).

[20] T.T., F. A., m. 12, n.º 3, fl. 9; F.S.C., fl. 4; F. V., fl. 53; Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 212. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 373-374; D.M.P.-I, p. 185; A. de J. da Costa e outros, Liv. Preto da Sé de Coimbra, vol. III, 1979, p. 227. 

[21] T.T., F. A., m. 7, n.º 7; F. A., m. 12, n.º 3, fl. 1; F.S.C., fl. 13; Tombos e Demarcações, m. 3, n.º 1. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 374-376; D.M.P.-I, p. 192.

[22] T.T., Sé de Coimbra, m. 1, n.º 20; Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 222. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 432-433, D.M.P.-I, p. 235, Liv. Preto da Sé de Coimbra, III, p. 264-266.

[23] T.T., F. A., m. 2, n.º 12; F. V., fl. 17 v.º; Santa Cruz de Coimbra, Liv. de D. João Teotónio, fl. 40 v.º. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 376-377, D.M.P.-I, p. 233.

[24] T.T., F. A., m. 1, n.º 11; Bens dos Próprios da Rainha, II, fl. 41 v.º; Publicado em P.M.H.-L.C., p. 383-386, D.M.P.-I, p. 300-303.

[25] T.T., Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 213 v.º; T.T., Sé de Coimbra, m. 1 (régios). Não passamos por alto o facto de encontrarmos nesse documento a primeira referência directa aos besteiros, que tanta influência devem ter tido no êxito das campanhas de D. Afonso Henriques.

[26] As principais diferenças encontram-se nas cláusulas de índole fiscal: omitem-se a referência à isenção do maninhádego, à redução dos serviços requisitados aos almocreves, o que significa que não existiam ou tinham pouca expressão local. Por razões idênticas não se menciona qualquer imposto aplicado às azenhas, ao linho, à madeira ou à lenha. A taxa sobre o vinho, que em Coimbra era de um oitavo, desce para um décimo em Soure, possivelmente em correspondência com as menores aptidões vinícolas dos terrenos, se não como um incentivo ao arroteamento das terras. Numa área onde a superfície inculta ainda seria extensa – praticava-se a montaria, assim como a recolha do mel e da cera – o rei comprometia-se a fornecer vigias para as muralhas, assim como a respectiva sustentação, deixando a cargo dos moradores a vigilância dos campos: “Sculcas omnes ponamus nos integras per totum annum et vos omnes arrotovas. Non detis (...) cibariam custodibus muri”.

[27] T.T., F. A., m. 3, n.º 6, 7, 8, 9; F. A., m. 12, n.º 3, fl. 11-12; F. S. C., fl. 1-1 v.º, C.R., Conv. de Cristo de Tomar, m. 1, doc. régios, n.º 9; F. V., fl. 21 v.º.

[28] A primeira referência ao concelho de Montemor-o-Velho encontra-se, aliás, num documento de 15 de Setembro de 1099, relativo a uma contenda entre o alcaide Paio Soares, nomeado pelo conde D. Henrique, e o abade da Vacariça, D. Zoleima. Cf. P.M.H–Diplomata et Chartae, p. 544-545. Apareceu recentemente o estudo de Maria Helena da Cruz Coelho, Forais de Montemor-o-Velho, Montemor-o-Velho, Câmara Municipal, 2002.

[29] T.T., Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 33 v.º.

[30] Actualmente fazem parte do concelho de Santa Comba Dão.

[31] No século XIV, conviviam nesta área o couto do mosteiro e o concelho de Santa Comba Dão. D. Fernando, em 1377, satisfazia uma reclamação dos moradores do concelho de Santa Comba, determinando que os moradores do couto do mosteiro que com eles confinava contribuissem para as obras de manutenção da ponte sobre o rio Dão, uma vez que também a utilizavam. Cf. T.T., Ch. D. Fern., liv. II, fl. 10.

 [32] T.T., F. V., fl. 12 v.; Ch. D. Af. III, livro I, fl. 36. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 353; D.M.P.-I, p. 18-19.

 [33] A data que aparece no foral de Azurara (era de MCXL) corresponde ao ano de 1102, o que é, ao menos aparentemente, inaceitável, porque o documento se apresenta como escrito por D. Gonçalo, Bispo de Coimbra, e nós sabemos que D. Gonçalo Pais foi prelado conimbricense de 1109 a 1128. Uma leitura atenta leva-nos a verificar que este diploma não foi directamente outorgado por D. Henrique, mas, em seu nome, por Egas Moniz, Rabaldo e Gonçalo Peres (“fecimus illam iurare ad ille Egas Moniz et domnus Rabaldus et Gonsalvus Petri in nostra vice”), e que sofreu adendas posteriores, processo vulgar na Idade Média, sendo apenas de lamentar que não possuamos o original, para distinguir os diferentes estilos de letra e as graduações da tinta. Entre as adendas, conta-se a aposição do nome do infante e futuro rei D. Afonso Henriques, dos condes D. Fernando (Peres, de Trava), Pedro Veni e Vermudo Peres. É de aceitar que, na mesma altura, ao nome do escrivão, mesmo quando o documento fosse elaborado muito antes, se apusesse a indicação da função que veio a exercer, a de Bispo de Coimbra, até para o distinguir de outro personagem de igual nome, que assinava alguns documentos da mesma época.

 [34] O foral de Tavares exibe a data de 27 de Fevereiro de 1114 (III.º Kalendas Marcii Era MCLII), colidindo apenas com a data geralmente aceite como a da morte do conde D. Henrique (1112). O documento chegou até nós em cópia tardia, sendo impossível a análise do original. A única hipótese de explicação seria a de imaginar na data um X aspado no lugar do L, dando lugar a uma antecipação de dez anos e colocando assim a elaboração do foral em 1104, data compatível com os outros dados cronológicos, designadamente com a lista de confirmantes.

[35] T.T., Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 255 v.º. Publicado em D.M.P.-D.P., p. 419-420.

[36] Os acontecimentos belicosos que na segunda década do século XII tiveram por cenário o território situado entre o Mondego e o Tejo poderão ter contribuído para o desaparecimento de alguns documentos importantes para a história da região. Pode ter sucedido isso com o município de Seia, de que apenas conhecemos o foral de 1136, embora o concelho já existisse e participasse no acto da outorga do foral de Arganil. Mas o foral de Arganil tem uma referência que se torna ininteligível se não supusermos que se está a decalcar, de maneira pouco expedita é certo, um texto que menciona uma localidade pertencente a Seia: “quantos modios dederint pro calumnias in Sancta Columba tantas flagellas”. Esta Santa Comba não é a da carta de foro de 1102 (Santa Comba Dão) mas a que hoje corresponde a uma freguesia confinante com a sede do concelho de Seia.

[37] T.T., Sé de Coimbra, m. 1 (doc. régios), n.º 8. Publicado em D.M.P.-I, p. 77. 

[38] T.T., C.R., Pendorada, m. 7, n.º 2. Publicado em D.M.P.-I, p. 139.

[39] Cf. Maria Helena da Cruz Coelho, Seia, uma terra de fronteira nos séculos XII-XIII, Seia, 1986.

[40] T.T., F. A., m. 12, n.º 3, fl. 11; F. S. C., fl. 6; F. V., fl. 28 v.º. Publicado em PMH-LC, p. 370-373; DMP-I, p. 176; Memórias da Academia, t. VII, parte II, p. 24.

[41] Nem todo o seu conteúdo corresponderá à data da outorga, em 1136. Há que admitir a existência de um núcleo original, que posteriormente se foi desenvolvendo, com interpolações ou acréscimos, conforme a exigência dos tempos. Nota-se uma diferença de discursos, pelo menos a partir da cláusula onde se trata da reconstrução dos muros da alcáçova: os moradores tomam a palavra, começando a falar na primeira pessoa. Os impostos e coimas são, de um modo geral, fixados em géneros; mas se, nesse contexto, é compreensível que, por excepção, o resgate de um mouro seja taxado em morabitinos, só uma interpolação ou adenda posterior justifica que apenas uma das coimas – ferir com armas feitas de propósito – seja tabelada em soldos.

[42] T.T., F. A., m. 12, n.º 3, fl. 9; F. S. C., fl. 4; F. V., fl. 53; Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 212.

Publicado em P.M.H.-L.C., p. 373-374; D.M.P.-I, p. 185; A. de J. da Costa e outros, Livro Preto da Sé de Coimbra, vol. III, 1979, p. 227. 

[43] T.T., F. A., m. 9, n.º 2; m. 12, n.º 3, fl. 58; F. S. C., fl. 11; F. V., fl. 61. Publicado em P.M.H.-L.C., fl. 377-378, e em D.M.P.-I, p. 287. 

[44] T.T., F. A., m. 2, n.º 8; m. 12, n.º 3, fl. 6; F. S. C., fl. 35 v.º; F. V., fl. 38 v.º. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 531-532. 

[45] T.T., F. A., m. 7, n.º 7; F. A., m. 12, n.º 3, fl. 1; F. S. C., fl. 13; Tombos e Demarcações, m. 3, n.º 1. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 374-376; D.M.P.-I, p. 192. 

[46] Muitas vezes se tem confundido esta Penela, situada no distrito de Coimbra, com outra Penela, localizada no concelho de Penedono, distrito de Viseu. Esta confusão encontra-se, p. e., em F. N. Franklin, Memória para Servir de Indice dos Foraes das Terras do Reino de Portugal e seus Domínios, 2.ª ed., Lisboa, 1825, p. 149, e na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, t. 20, p. 975-976, v. Penela.

[47] T.T., Gav. 15, m. 12, n.º 27. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 589. 

[48] T.T., F. A., m. 2, n.º 12; F. V., fl. 17 v.º; Santa Cruz de Coimbra, Livro de D. João Teotónio, fl. 40 v.º. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 376-377, D.M.P.-I, p. 233.

[49] T.T., Sé de Coimbra, m. 1, n.º 20; Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 222. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 432-433, D.M.P.-I, p. 235, Livro Preto da Sé de Coimbra, III, p. 264-266. 

[50] T.T., F. A., m. 1, n.º 11; Bens dos Próprios da Rainha (D. Leonor), II, fl. 41 v.º; Publicado em P.M.H.-L.C., p. 383-386, D.M.P.-I, p. 300-303. 

[51] O “Tratado de IbnAbdun” pode elucidar-nos sobre a maneira como na época muçulmana se perspectivava o governo ideal de uma cidade. Cf .  Evariste Lévi-Provençal, Séville musulmane au debut du XIIe siècle. Le traité d’Ibn ‘Abdun sur la vie urbaine et les corps de métiers. Nouv. Éd., Paris, Maisonneuve & Larose, 2001. Texto parcialmente traduzido, a partir da edição castelhana (Evariste Lévi-Provençal y Emilio García Gómez, Sevilha a Comienzos del Siglo XII, Madrid, Moneda y Credito, 1948), em António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, vol. III, Lisboa, Seara Nova, 1973, p. 215-243.

[52] Jean-Claude Garcin et alii, États, Sociétés et Cultures du Monde Musulman Médiéval (X.e-XV.e siècle), vol. 3, Paris, Presses Universitaires de France, 2000, p. 62.

[53] T.T., Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 15.

[54] Ricardo Izquierdo Benito, Privilegios Reales Otorgados a Toledo durante la Edad Media (1101-1494). Toledo, Instituto de Investigaciones y Estudios Toledanos, 1990, p. 89.

[55] As duas expressões, rectores e judices, parece corresponderem à mesma realidade, como se pode verificar na carta de foro de Santa Comba, em 1102, “Hos (...) confirmandum rectoribus terre sive iudicibus stabiliter tradidimus”.

[56] T.T., Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 15 v.º-16.

[57] Numa das cláusulas diz-se “monteiros qui fuerint pro pelles de bestiis adducant illas ad concilium et vendant illas sine nullo meto, et qui plus dederit vadat cum illas et non sedeant pignoratus proinde neque raupatus”.

[58] Quem praticasse um delito não podia ser penhorado senão em consequência de um veredicto do órgão da justiça, devendo apresentar-se ou ser levado ao concelho, para cumprir o direito. Num claro propósito de evitar a sua opressão, dizia-se expressamente que esta disposição valia também em relação às mulheres de qualquer posição social. Com o propósito de garantir a isenção dos juizes, o foral proibia a realização dos julgamentos no interior da alcáçova, assim como a presença do senhor ou do mordomo.

[59] Como já observámos em Origens dos Municípios Portugueses, ao contrário do que à primeira vista poderia parecer, não se tratava de colocar a presidir aos julgamentos dois funcionários – alcaide e juiz – em alternativa, mas de uma só autoridade com duas possíveis designações: alcaide não era, neste caso, sinónimo de um cargo militar (as funções que dentro da alcáçova lhe competiriam eram atribuídas ao mordomo), mas de juiz, sendo uma variante do nome com que noutros documentos da Beira Alta se designavam os mais altos magistrados locais – os alcaldes. De facto, careceria de sentido que, para preservar a independência dos juizes, os julgamentos se fizessem fora da alcáçova e acabassem por ser presididos pelo militar que a governava. Poder-se-á estar, no entanto, perante uma antecipação do que irá suceder nos municípios que receberão um foral do tipo do de Évora, como parece acontecer em Penela e no Germanelo, de que nos ocuparemos de seguida.

[60] Se em algum caso uma determinada função era indiscriminadamente exercida quer pelo mordomo, quer pelo saião ou pelo juiz, é porque se tratava apenas de exigir uma testemunha qualificada, devidamente autorizada para dar legitimidade, com a sua presença, à realização pacífica de um tipo de actos de certo melindre – neste caso, a entrada em casa alheia para a efectuação de penhoras.

[61] O texto deste foral não deve ter sofrido alterações, pelo menos facilmente identificáveis, de modo que talvez se possa apresentar como o mais próximo do paradigma original do conjunto de foros outorgados na região pelos anos de 1136-1137.

[62] No foral de Sintra encontramos a primeira situação de privilégio concedida aos homens da governação municipal: os membros do concelho envolvidos nas funções da magistratura (“illi qui castellum iudicaverint”) estão imunes da aplicação de coimas.

[63] Designadamente, competia aos homens-bons proceder à “exquiritio”, isto é, ao apuramento da verdade dos factos, especialmente nos casos de homicídio, só depois se podendo passar à aplicação das respectivas coimas.

[64] O juiz recebia como remuneração a décima parte das coimas devidas ao príncipe, isto é, ao senhor, assim como o saião recebia a décima parte da importância que coubesse ao juiz; em contrapartida eram responsáveis pela defesa dos interesses do “príncipe”. Esta insistente referência ao príncipe (princeps) terá um significado predominantemente formal e jurídico, sendo uma fórmula utilizada para designar a estância superior do poder, embora possa acusar algumas reminiscências do tempo da administração muçulmana.

[65] Sobre a jugada, cf. Paulo Merêa, Reflexões sobre a origem da jugada, em Novos Estudos de História do Direito, Barcelos, 1937, p. 83-100; Robert Durand, Les Campagnes Portugaises entre Douro et Tage aux XII.e et XIII.e siècles, Paris, 1982, p. 502-506.

[66] A jugada aplicava-se aos cereais, que constituíam a parte mais importante da economia agrícola e a única que inicialmente estaria sujeita a tributo; com o andar dos tempos, outros artigos viriam a ser tributados, como, no caso de Sátão, o vinho, o linho e as favas, taxadas segundo o critério da ratio (razão ou percentagem), que, no norte do país, era o modo de tributação também aplicado aos cereais; como no norte, a caça era taxada com o pagamento (“peia”) do valor equivalente aos dois lombos do animal, na caça grossa, ou de um coelho “de morada” (por cada saída à caça).

[67] Alexandre Herculano, História de Portugal, t. VI, p. 274, cita alguns documentos onde a expressão aparece em sentido diferente, mas esses lugares situam-se a norte do Douro e o que nos interessa aqui não é a palavra mas a realidade; a expressão é usada, no norte, em sentido genérico, a designar um tributo pago pelos agricultores. Por exemplo, a carta de foro de Sanguinhedo (freg. Mouçós, conc. de Vila Real) diz, em 1223: “Pro mea collecta II quarteiros de centeno et II puçales de vino, et I morabitinum pro carne. Istam collectam detis una vice in anno quando eam demandavero in villam Sancti Laurencii vel ad feriam vel ad Mateus vel ad Adaufi; et istos XVIII modios supradictos detis in tempore arearum et vindemiarium ad maiordomos ipsius ville per mensuram ferie Costatim que odie ibi est; et maiordomus ipsius ville debet vocare maiordomum terre per IIªs vices cum testimoniis bonorum hominum de ipsa villa de Sanguinedo et si pro illa noluerit venire maiordomum terre in supradicto tempore sicut superius scriptum, debet perdere eam et vos nunquam de ea respondeatis. Maiordomus qui fuerit de vestra villa petat ipsa jugada ab hominibus qui fuerint in ipsa villa et mensurent eam per manum suam et postquam mensuraverit illam rendat [reddat] eam vicario meo qui ipsam terram tenuerit”. (T.T., Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 1). A carta relativa a Vila Chã (fr. do concelho de Alijó), em 1217, estabelece: “In primis damus vobis pro foro quod detis nobis de ipsa hereditate pro iugada in unoquoque anno octo modios de pane, terciam partem de centeno, et terciam de ordeo, et terciam de milio” (T.T., Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 51).

[68] Robert Durand, Les Campagnes Portugaises entre Douro et Tage aux XII.e et XIII.e siècles, Paris, 1982, p. 502.

[69] O Corão, na sura (capítulo) V/90-91, condena o uso do vinho: “Crentes! O vinho, o jogo de azar, os ídolos e a superstição, são, na verdade, abominações provenientes da actividade de Satanás: evitai-as e sereis bem-aventurados!”; e na sura XXIII/18, ao exaltar a obra da criação, expressa-se deste modo: “Do céu fizemos descer água (...). Com ela fizemos nascer jardins de palmeiras e videiras, nos quais tendes muitos frutos de que comeis”; porém, na sura  XXXVII/45-47, ao cantar a felicidade dos bem-aventurados no paraíso, exprime-se assim: “Entre eles circulará em volta a taça cheia de água corrente, límpida, doce ao paladar dos que a bebem. Não conterá embriaguez nem se embriagarão com ela”.

[70] Sobre a atitude do Islão ibérico em relação às bebidas alcoólicas, cf. Evariste Lévi-Provençal, Histoire de l’Espagne musulmane, t. III, Paris-Leyde, 1967, p. 277.

[71] Terá sido menos frequente a produção de vinho pelos próprios muçulmanos. Christine Mazzoli-Guintard, em Vivre à Cordoue au Moyen Âge. Solidarités citadines en terre d’Islam aux Xe-XIe siècles (Presses Universitaires de Rennes, 2003, p. 210), publica uma fatwā ou parecer jurídico emitido por um perito, segundo a qual um certo ‘Abd Allāh b. Hamdūn devia ser castigado a dobrar, porque não só produzia vinho como também o vendia.

[72] António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, vol. 4, Lisboa, 1975, p. 303.

[73] Sobre esta temática, em síntese, cf. A. H. de Oliveira Marques, Introdução à História da Agricultura em Portugal, Lisboa, 1978, p. 191-198; Jorge Dias, v. moinhos, em Dicionário de História de Portugal, vol. III, Lisboa, 1966.

[74] Cf. Viterbo, Elucidário das Palavras, Termos e Frases que antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram. Ed. crítica por Mário Fiúza, vol. I e II, Porto, Liv. Civilização, 1983, v. azaga, azaria, fossado. James F. Powers, A Society Organized for War, Te Iberian Municipal Militias in the Central Middle Ages, 1000-1284. University of California, 1988, p. 153-158.

[75] Uma vez que se vão referir vários tipos de medidas, apresenta-se um quadro sucinto dessa matéria:

Medidas mais frequentes 

 

Designação

Forma latina

Equivalências

 

 

 

 

moio

modius

quatro quarteiros

16 teigas

64 alqueires

 

 

quarteiro

quartarius

quarto de moio

4 teigas

16 alqueires

 

 

sesteiro

sextarius

sexta parte do moio

 

 

 

 

teiga

taliga

 

 

4 alqueires

 

 

alqueire

 

(em média 14 litros)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cf. Robert Durand, Les Campagnes Portugaises entre Douro et Tage aux XII.e et XIII.e siècles, Paris, 1982, p. 502, p. 515-516; A. O. Marques, v. Pesos e Medidas, em Dicionário de História de Portugal, vol. III, Lisboa, 1966, p. 369-374. Dada a natureza do presente trabalho, cingimo-nos a este quadro genérico, mas a matéria é muito mais complexa. Sobre o assunto vale a pena consultar os trabalhos de L. Seabra Lopes, designadamente Medidas Portuguesas de Capacidade: do Alqueire de Coimbra de 1111 ao Sistema de Medidas de D. Manuel, em Revista Portuguesa de História, vol. 32 (1998), p. 543-583; Medidas Portuguesas de Capacidade: duas Tradições Metrológicas em Confronto Durante a Idade Média, em Revista Portuguesa de História, vol. 34 (2000), p. 535-632.

[76] “Do eis pro foro ut ille homo qui unum bovem habuerit et aparzaverit cum alio qui alium bovem habuerit, ambo dent unum modium. Qui laboraverit cum uno jugo det unum modium, qui cum duobus jugis det unum modium. Qui amplius quam cum duobus iugis de quantis bobus fuerint II quartarios, unum quartarium de tritico et alium de milio”.

[77] O manelo (de manípulo), a estriga e o afusal foram medidas de linho usadas no mundo rural português até ao presente. Não é possível saber se na Idade Média os valores eram os mesmos.

[78] Na carta de Santa Comba não encontramos referências a tributos sobre a produção de vinho, que no entanto aparecem mencionados noutros forais e em muitos outros documentos da região de Coimbra. Sendo o vinho interdito aos seguidores de Maomé, com a flexibilidade a que já fizemos apelo, não espanta que uma das actividades mais vezes referidas nas terras reconquistadas seja a plantação de vinhas e que, do mesmo modo, a sua tributação siga um critério diferente do da jugada, que não estava adaptado a esta situação.

[79] Pequena medida de capacidade, cuja equivalência desconhecemos e que não se incluiu no mapa supra.

[80] Veado, do latim venatum (do verbo venor, caçar) é entendido umas vezes genericamente como o animal caçado e outras vezes no sentido restrito que lhe damos actualmente (cervo).

[81] Os cavaleiros “defendiam”, isto é, gozavam de isenção e de imunidade em relação às suas herdades e ao seus homens, mantinham este estatuto na velhice, transmitiam-no à viúva, e conservavam-no durante o prazo de dois anos, depois de perder o cavalo, enquanto não adquirissem outro.

[82] O cavaleiro estava isento do pagamento de jugada, privilégio que transmitia à sua viúva e mantinha mesmo se caísse na pobreza e na miséria.

[83] Uma cláusula semelhante aparecerá no foral de Évora e nos dele derivados.

[84] Os privilégios do cavaleiro estendiam-se às propriedades que ele viesse a adquirir, mantendo-se na velhice e, quando perdesse o cavalo, enquanto não adquirisse outro, pelo prazo de um ano; transmitiam-se à sua mulher e aos seus filhos, quando migrasse, isto é, quando morresse.

[85] Embora reconhecendo aos cavaleiros o direito de administrar a justiça aos seus dependentes, dentro dos respectivos domínios, o diploma estipulava que, por ausência dos primeiros, seria o concelho, em tais casos, o garante do direito.

[86] Veja-se a observação que fazemos em Origens do Municípios Portugueses, 1.ª ed., p. 107, 2.ª ed., p. 92.

[87] Sintetizadas no nosso estudo Origens do Municípios Portugueses, 1.ª ed., p. 110-111, 2.ª ed., p. 94-95.

[88] O perturbador obstinado da paz interna do município (“qui fuerit firidore, et non se inde voluerit emendare, usque tres vices, per manum concilii, aut cusculator fuerit”) era considerado indesejável e, por isso, aplicava-se-lhe a pena de demolição da casa onde vivia.

[89] Os delitos menores não acarretavam qualquer coima (“de aliis percussionibus factis manu, calce, petra e palo et aliis intencionibus nulla sit calumpnia excepto supra dictis”), mas, se fosse necessário, sanavam-se com um castigo físico (“qui imprimatur et alium percusserit accipiat X.cem varancadas” (isto é, “a quem empurrar ou agredir outrem apliquem-se dez bastonadas”), sem excluir a obrigação de reparar os danos causados (“et postea faciat directum ad illum qui percusserit per suum forum”).