sábado, 30 de outubro de 2021

3.7 – Na órbita de Coimbra

      1. A norte de Coimbra.

     Garcia de Cortázar, seguindo a inspiração de Sanchez-Albornoz, já tinha chamado a atenção para a importância que os vales dos rios ibéricos tiveram no aparecimento e desenvolvimento de várias comunidades, especialmente ao longo da Idade Média[1], por isso que, além de uma geografia, nos oferecem também uma história. Mas se os vales se comportaram como incubadoras de comunidades, foi também através deles que os homens circularam, estabeleceram intercâmbios, exerceram e sofreram interacções. Pelos vales do Mondego e dos seus afluentes, especialmente do mais importante de todos, o rio Dão, a influência de Coimbra estendeu-se a uma vasta região, que vai desde a foz aos contrafortes das serras onde brotam as primeiras nascentes. No entanto, essa influência misturou-se com a de outras fontes, do interior e do norte do território, com as quais os homens estabeleceram diversos contactos, especialmente nos tempos em que foram protagonistas do vaivém da reconquista. Por isso, é oportuno, sem esgotarmos a matéria, dar uma vista de relance ao que se passou sobretudo a nordeste de Coimbra, desde Viseu a S. Martinho de Mouros e a Sernancelhe, sem esgotarmos a matéria, para compreendermos até que ponto a sua influência foi ou não acolhida e interagiu com a de outras origens.

     1.1. Entre S. Martinho de Mouros e Sátão.

     1.1.1. S. Martinho de Mouros, localizada nas margens do Douro, foi uma das povoações conquistadas por Sisnando Davides aos sarracenos, no tempo de Fernando Magno, e, como tal, integrada no território confiado ao seu governo. O alvazil concedeu aos homens de S. Martinho uma carta de foro, confirmada mais tarde por D. Teresa, em 13 de Março de 1121[2], mas apenas conhecida através de uma versão posterior, de 11 de Junho de 1342, data em que o juiz, dois vereadores e três tabeliães do lugar, reunidos na igreja local, por convocação do meirinho e na presença deste, reduziram a escrito os seus usos e costumes, incluindo a tradução em vernáculo do diploma teresiano e várias disposições ditadas pelo corregedor[3].

     Dada a localização de S. Martinho de Mouros, o seu foral avizinha-se mais dos do grupo de S. João da Pesqueira do que da tradição coimbrã. Assim, embora a sociedade local fosse constituída por duas classes de indivíduos – uns, proprietários de herdades, que só dependiam do poder central; outros, que viviam e trabalhavam nas herdades alheias, servindo apenas os seus proprietários – não se utiliza expressamente a classificação em “maiores” e “menores”, que encontramos nos documentos de Coimbra.

     Também a tributação seguia um esquema que não era o da ratio nortenha nem o da jugada, à maneira de Coimbra: as herdades estavam sujeitas, com efeito, ao pagamento de direituras – três quarteiros de cereal, já que de mais um dispensara-os o conde D. Henrique, “per remedio de sa alma” – e de rações apenas quanto ao vinho e ao linho, a quarta e a sexta parte, respectivamente. Sobre a pesca impendia a obrigação de pagar a dízima, ajuntando-lhe mais dois sáveis e duas lampreias; se a captura se fizesse nos canais, além de dois peixes, escolhidos entre os melhores, liquidava-se a ração (dízima, segundo parece) em duplicado. Para aludir a um outro ponto de contacto com o grupo de S. João da Pesqueira, embora em direcção diferente, registe-se que, após o matrimónio, os recém-casados estavam isentos da obrigação de prestar serviço ao rei durante um ano.

     1.1.2. Quando, em 1111, D. Henrique preparava a sua intervenção em Coimbra a partir de Sátão, concedeu a esta localidade um foral[4], que, sob a forma de um agradecimento pela colaboração que lhe prestaram os moradores, reconhecia o papel estratégico de Sátão: “Placuit nobis (...) ut demus vobis forum bonum pro capud et honore quo fecistis super nos primo et collegistis nos in vestra kasa proinde ponimus vobis foro per ubi andetis et non exeatis de illo nec vos nec semini vestro”[5].

     Era a primeira vez que, entre nós, um foral ou um documento relativo a um município se referia aos homens-bons: “si calumpnia feceritis ut veniant IIII.or aut V.e de illos bonos homines qui levatos fuerint de concilio et iudicent illam cum vestro iudice” (se cometerdes um delito, venham quatro ou cinco homens-bons saídos do concelho e julguem-no com o vosso juiz).

     A nível da fiscalidade, vigorou em Sátão um modelo de tributação, a que apenas estavam sujeitos os peões, baseado fundamentalmente na jugada, seguido de um modo geral em toda a área de influência de Coimbra, mas num valor bem acima dos que até agora encontrámos: dois moios de cereal por cada jugo, um moio por um só animal. Pelo vinho, pelo linho e pelos legumes, a ratio é também das mais elevadas: um sexto. Pela caça grossa, dois lombos e pela caça miúda, um coelho.

     A confirmação do foral de Sátão por D. Afonso Henriques[6], que também carece de referências cronológicas, embora não devamos estar longe da verdade se o aproximarmos da data em que foram outorgados os de Seia, Miranda do Corvo e Penela, e confirmados os de Ansiães, Ferreira de Aves, Viseu e Sernancelhe, entre 1136 e 1137, amplia a autonomia municipal dos zalatanenses, conferindo-lhes o privilégio de escolher o senhor ao qual passariam a estar sujeitos – “non demus vobis seniorem nisi quale vos laudaveritis”, assim como a de ter um juiz e um saião escolhidos entre os vizinhos: “et iudice aut sagione de vestra vila et de vestra gente”.

     1.2. A especificidade de Viseu.

     O foral outorgado a Viseu, em Maio de 1123, tinha como destinatários expressos não, como até agora vimos, os simples agricultores, os burgueses ou os membros de uma sociedade mista composta por maiores e menores, cavaleiros e peões, mas os cavaleiros vilãos (cives milites) da localidade[7], expressão tanto mais significativa, quanto é precedida de uma justificação, que naturalmente se explica como uma referência às perturbações ocorridas na área sul do território: “videns et cognoscens fidelitatem et bonum servicium in homines de Viseo”. Além dos cavaleiros, o município era habitado por jugários, obrigados ao pagamento de um tributo designado como “jugada nova”. A designação de jugada era geral nos municípios implantados na órbita de Coimbra, mas a qualificação de “nova” estabelece a diferença e, ao contrário do que já chegamos a pensar[8], deverá corresponder a uma diferente estrutura do tributo, fixado não segundo o velho critério da jugada, entendida à letra, mas segundo a nova fórmula da ratio ou percentagem da colheita[9]. Os mercadores, tal como sucedia nos burgos nortenhos, pagavam um censo fixo anual.

     O foral é avaro em dados sobre a organização interna da comunidade, mas uma carta passada, em Outubro de 1125, a favor de um tal Gauviti e de suas filhas, relativa à “vila” de Marzovelos em terra de Viseu, referia-se ao juiz, ao mordomo e ao saião, de cuja jurisdição o isentava: “ut nullus homo nec iudex nec maiordomus nec saionem non videas de hodie die pro nulla causa”[10]. Esta organização do município aparece claramente no foral confirmado em 1187, onde se apresentava como condição para a escolha do juiz e do mordomo ou serviçal a sua disposição de servirem gratuitamente.

     Sendo, de qualquer modo, muito breve, o foral, seguindo a tradição de Coimbra, é omisso no que respeita a normas de justiça e, em particular, à fixação das coimas, e, por esse motivo, D. Afonso Henriques, em data que andará pelo ano de 1136, quando circuitou pela zona e assinou outros forais (Seia, Penela, Arganil) onde há disposições semelhantes, outorgou a nova carta de foro, confirmada por D. Sancho I em 1187, a qual, em várias cláusulas, não fazia mais que completar e tornar mais claro o foral concedido por D. Teresa[11].

     Em relação aos componentes do agregado social, esta nova carta não introduz qualquer novidade substancial[12], para além da referência aos padeiros e aos sapateiros, somados aos mercadores, estes já presentes no diploma teresiano, sendo de supor a sua existência num aglomerado urbano que atingisse uma determinada envergadura.

     1.3. O dinamismo do interior.

     Também o foral de Ferreira de Aves, outorgado na sua versão inicial em tempos de D. Teresa (1126) e depois confirmado por D. Afonso Henriques, chegou aos nossos dias numa versão modificada e ampliada, em relação ao documento inicial[13]. Não é fácil distinguir as cláusulas correspondentes às diferentes épocas, que só em alguns casos se poderão identificar com clareza. É todavia claro que a organização municipal assentava nos mesmos fundamentos que a de Viseu, com funções idênticas para os respectivos órgãos: o concelho, formado pelos homens-bons, o juiz, o saião.

     Sob o ponto de vista da sua composição e estatuto, a sociedade de Ferreira de Aves correspondia, no essencial, ao modelo já descrito, sendo formada fundamentalmente por cavaleiros e peões, a que se juntavam os ministeriales ou mesteirais[14] e os pastores. A pastorícia devia ter, aliás, um lugar importante na economia local, não só porque no foral se mencionam os pastores, o que não é frequente, mas sobretudo porque essa menção se faz num contexto onde se trata da violação da propriedade e se refere expressamente a existência de sebes erguidas para evitar que as vinhas e as almuinhas fossem devassadas, especialmente pelos rebanhos.

     O tributo principal aplicava-se à actividade agrícola, mas não era adoptado o critério da ratio nem o da jugada, embora se tomasse como referência, e por conseguinte como condicionante, a existência de gado bovino: “qui laboraverit cum uno bove des III.es solidos et cum duos III.es quartarios terciados per ipsa medida de Linares et plus boves miserit non dones plus”. Os agricultores não pagavam tributo sobre a caça ao coelho, que sobrecarregava os que apenas a ela se dedicassem, tal como sucedia mais a sul, em Penela.

     Uma das mais interessantes características do foral de Ferreira de Aves está na atenção dada aos aspectos relacionados com a família. O homem que se casasse não daria “offrecione” pela mulher; entre o homem e a mulher desposados “ad benedictiones” (de bênçãos, isto é, na linguagem da época, que tivessem celebrado casamento religioso) vigorava o regime de comunhão de bens, de que resultava a partilha destes ao meio, quando o casamento se extinguisse “sive in morte sive in vita”; quando o marido falecesse, a mulher não pagava lutuosa; se uma viúva com filhos voltasse a casar-se, o novo marido olharia por eles, pelas suas herdades e gados, até que atingissem a idade de assumir essa responsabilidade.

     Uma série de cláusulas destinava-se a resolver os mais frequentes problemas judiciais: existência de queixa, para que um delito pudesse ser tratado pelo saião ou pelo juiz, prazo para a sua apresentação (em caso de rouso), delimitação das responsabilidades (em actos de furto), suficiência das testemunhas abonatórias em casos de suspeita (de homicídio). A aparente falta de equidade no âmbito da justiça penal dever-se-á ao facto de a tabela das coimas aplicáveis aos diversos crimes e delitos ser resultante de um conjunto de elementos introduzidos em datas diferentes, de tal modo que alguns crimes mais graves eram punidos com castigos mais leves: o homicídio e o rouso eram castigados com uma multa de 50 moios, enquanto a violação do domicílio o era com 60 moios.

     1.3.2. Sernancelhe localizava-se na periferia nordeste da área de influência de Viseu, numa zona que confinava com os municípios do grupo de S. João da Pesqueira e de Ribacoa, o que não deixaria de influenciar os costumes e, por conseguinte, o direito local. Pela sua localização geográfica e estratégica, deve ter constituído um centro regional de grande importância, especialmente no período anterior ao alargamento da fronteira, em 1162 ou 1163, com a integração em Portugal de Marialva, Trancoso, Celorico e Aguiar da Beira. O foral de Sernancelhe viria a ser reproduzido mais tarde pelo de Sebadelhe da Serra, em 1220[15], e na versão original terá servido de modelo ao de Longroiva, hoje desaparecido, mas adoptado como paradigma pelo de Vilarinho da Castanheira[16].

     Uma leitura crítica do foral de Sernancelhe[17] levará, pouco a pouco, à descoberta de diversos “estratos”, correspondentes a sucessivas fases de elaboração, distribuídas por várias épocas[18], e, por isso, o seu conteúdo não corresponde rigorosamente a um retrato da sociedade e da administração local num determinado momento, mas traduz uma evolução que se prolonga durante mais de meio século. O núcleo inicial da carta deveria terminar na cláusula onde o peão que tivesse uma égua e as armas adequadas se equiparava ao cavaleiro[19]. Na cláusula seguinte muda o discurso, aparecendo os moradores a falar em seu próprio nome: “si unus ex nobis (...)”. Este procedimento, com os vizinhos a exprimirem-se na primeira pessoa, ou mesmo a dirigirem-se ao senhor, repete-se em várias outras frases, como esta: “contra vestros inimicos ibimus vobiscum”.

     Em Sernancelhe a organização local assentava na assembleia dos homens-bons, e na existência e actuação do concelho, do juiz, e do saião. Pela primeira vez encontramos na documentação municipal uma passagem que esclarece as dúvidas sobre o significado que na época se atribuía à expressão homens-bons: “homem-bom” contrapõe-se a “mancipio” e é, por conseguinte, sinónimo de “homem livre”[20]. As demandas que surgissem entre os vizinhos apresentavam-se ao concelho, formado por estes homens-bons. A este concelho competia a escolha do juiz e do saião. O alcaide, nomeado pelo rei, não tinha outras atribuições para além das que lhe competiriam no âmbito da defesa.

     Ao longo do século XII, a sociedade local foi-se enriquecendo com novos matizes, em consequência do gradual desenvolvimento económico. Inicialmente era formada sobretudo por cavaleiros e peões, a que se juntava o reduzido número dos clérigos e o grupo relativamente grande dos dependentes ou “mancipii”, existente em todos os municípios das áreas viseense e coimbrã. O peão que possuísse égua ou cavalo e as armas adequadas subia à categoria dos cavaleiros. A palavra cavaleiro, nos forais de Seia, de Ferreira de Aves, de Sernancelhe, e, já no de Viseu, empregou-se cada vez mais, em substituição da mais genérica “miles”, em correspondência com a introdução de especializações dentro da carreira militar. De facto, foram pela primeira vez objecto de expressa atenção, no foral de Sernancelhe, os besteiros[21], cujo estatuto social se equipara ao dos cavaleiros[22], e cuja aparecimento, pela eficiência que lhes concedia, terá correspondido a uma modificação de extraordinário alcance para as hostes de D. Afonso Henriques[23].

     O foral testemunha o incremento dos mesteres no perímetro do município: ferreiros, oleiros, conqueiros, peliteiros e sapateiros, a que se ajunta uma profissão que aí se prevê como de dedicação exclusiva, a de pescador.

     A tabela de impostos, que impendiam sobre os peões que se ocupavam no cultivo dos campos, embora os quantitativos fossem diferentes, seguia um critério semelhante ao de Tavares e de Ferreira de Aves, isto é, não se baseava na ratio ou percentagem sobre a produção, nem na jugada, mas consistia numa renda ou quantia fixa de um quarteiro de cereal para quem trabalhasse com um boi ou mais, acrescentando-se-lhe um puçal de vinho a partir do momento em que a respectiva colheita atingisse os cinco quinais; e do mesmo modo se procedia em relação à caça: duas costas do javali, um lombo do veado, e, pela caça miúda, um coelho, de quem a ela se dedicasse por mais de três dias, havendo modalidades que estavam isentas; o pescador profissional saldava as suas obrigações fiscais com o produto de duas noites passadas no rio. Os mesteirais eram tributados em artigos ou géneros produzidos pela sua especialidade: malhos (ferreiros), olas (oleiros), concas (conqueiros), mantos (peliteiros).

     O foral de Sernancelhe, tal como o do próximo município de Ferreira de Aves, contém cláusulas relacionadas com a salvaguarda do direito de propriedade e com a justiça social, destinadas a proteger os habitantes contra os abusos dos poderosos: é proibido requisitar ou tomar haveres, especialmente animais, aos moradores, entrar contra a vontade do respectivo dono em casa alheia, é reconhecido o direito a dispor das herdades, baseado no princípio da posse de mais de um ano, é obrigatório levar os acusados ao concelho, para os submeter a julgamento, antes de lhes infligir qualquer pena, não é permitido fazer penhoras antes da sentença e sem as devidas formalidades (era necessária a intervenção do saião), nem há lugar para qualquer “ofreição” ao palácio por ocasião do casamento. Merece referência particular o delito de “tomar cavalo ou boi alheio” por se considerar agravante a mais alta posição social do criminoso.

     A sobrevivência de tradições já arcaicas manifestava-se, entre outros costumes, no recurso à “prova” ou luta com fins judiciais[24] e no teor das penalidades aplicáveis aos delitos, onde reapareciam os castigos físicos – flagelli ou vergastadas – para certas infracções, embora se pudesse convertê-los em multas pagas a dinheiro ou em géneros, como se infere quando, tal como sucedia com outras coimas, se previa a repartição da receita entre o lesado e o palácio.

     2. O vale do Nabão.

     D. Afonso Henriques entregou aos Templários a defesa e a organização do território localizado numa importante área de passagem entre o Tejo e o Mondego, seguindo os vales do Nabão e do Arunca. A Ordem do Templo passaria a ter um papel fundamental na vida e na exploração económica deste espaço geográfico, recorrendo inclusivamente à criação de novos municípios através da concessão de alguns forais.

     Se já o foral concedido pelo Mestre Gualdim Pais a Redinha[25], em 1159[26], recolhia as tradições coimbrãs[27], seria o de Tomar que, em 1166, decalcaria à risca o de Coimbra, embora a necessidade de colmatar a falta de tradições entre os povoadores tivesse levado o Mestre a outorgar, em 1174, um segundo documento, que contemplava predominantemente aspectos relacionados com a justiça. Separadas, ou fundidas num só documento, as duas cartas servirão de modelo aos forais outorgados a outras localidades colocadas sob a jurisdição dos Templários.

     2.1. A primeira experiência.

      O foral de Redinha (1159) não faz qualquer alusão explícita à existência de um “concelho”, mas, em contrapartida, refere-se a uma entidade plural, justiças, a quem, em simultâneo com o juiz, compete velar pela observância do direito: “Si quis aliquid tortum alicui fecerit, coram iudice et iusticiis illi satisfaciat sine pecto”. Estes ou estas justiças voltarão a aparecer no foral de Tomar de 1174 e seus derivados, devendo corresponder aos “alvazis”, vocábulo já presente em velhos documentos da região de Coimbra, mas que a designar os membros do concelho municipal restrito só aparecerão mais tarde, nos municípios que receberam o foral de 1179.

     Para além disto, o foral limitava-se a fixar os foros a pagar pelos moradores, que se distribuíam por dois ramos de actividade: a agricultura e a montaria, incluindo a recolha do mel e da cera. A tributação sobre os rendimentos agrícolas não era feita por jugada à maneira de Coimbra nem por quantitativos fixos como em certas localidades do interior beirão, mas no estilo nortenho, por ração ou percentagem, que aqui era de um décimo sobre a produção, acrescentado dos tributos de eirádiga e de mordomia ou “serviço”. O agricultor (laborator), mesmo que fosse à caça, estava isento dos tributos de montaria.

     2.2. A governação do município.

     O foral concedido por Gualdim Pais a Tomar, em 1162[28], é o que mais fielmente segue o de Coimbra de 1111.  Quando não são meramente literárias e formais, as diferenças entre os dois resultam da necessidade de adaptação, a uma povoação sob a jurisdição do Mestre da Ordem do Templo, de uma carta de foro concedida há muitos anos pelo Rei a uma cidade próxima. O foral de Tomar, de 1162, reproduzido pelo de Pombal, em 1174[29], é igual ao de Coimbra, se exceptuarmos o protocolo e o escatocolo e as cláusulas onde há uma relação estreita com o diferente estatuto dos outorgantes e com as situações daí resultantes.

     Com o andar dos anos, veio a acentuar-se em Tomar a carência de uma tradição jurídica idêntica à de Coimbra, lacuna que viria a ser preenchida com o foral de 1174[30]. O foral de 1162, com efeito, limitava-se praticamente a garantir as liberdades e os direitos municipais e a definir as obrigações fiscais. Não continha normas que regulassem os procedimentos judiciais, nem tabela de coimas. Gualdim Pais, depois de ter promulgado a carta de 1162, reconheceu que era “necessarium (...) rapinas et iniurias a populo nobis subdito misericorditer removere”, o que o levou a outorgar a carta de 1174, com vários “decreta” destinados a regular a vida dos munícipes. 

     O processo seguido em Tomar repetir-se-ia em Pombal, a que em 1174 e 1176 foram concedidos forais idênticos, respectivamente, ao primeiro e segundo de Tomar. A Castelo do Zêzere o Mestre dos Templários concedia, em 1174, uma carta de foro em que se fundia o conteúdo dos dois diplomas de Tomar. A mesma solução foi adoptada para o diploma outorgado por Pedro Afonso a Figueiró dos Vinhos[31] e a Arega[32]. De igual modo, Ourém e Torres Novas receberiam forais em que se uniam ambos os textos, com o acréscimo de algumas variantes. Também os forais de Vila Ferreira e Atalaia[33] sofreriam a influência dos forais de Tomar, provavelmente por intermédio de Castelo do Zêzere. A Abiul, que em 1206 recebeu uma carta do Abade do convento de Lorvão, Pombal serviu de referência no foro penal.

     Embora na dependência do Mestre, localmente representado por um comendador, no interior do município a autoridade máxima pertencia ao concelho. Uma das cláusulas do foral de 1174 referia-se ao alcaide ou juiz – “sinal d’Alcaide aut iudicis cum testimonio teneatur” – mas não é claro se a disjuntiva se referia a cargos diferentes ou a dois nomes que designavam o mesmo cargo. Pelo menos, nunca mais, no texto do diploma, se volta a falar expressamente do juiz, mesmo em cláusulas como aquela em que se mencionam as autoridades a quem se pode apresentar queixa contra os autores de furto: “Si quis de domo alterius aut extra domum se per vim acceperit et dominus suus venerit cum rancura ad comendatorem domus vel ad alcaide vel ad iusticias vel ad maiordomum”, e até aquela em que se estabelece uma garantia monetária[34] para as autoridades concelhias: “maiordomus et sayon et iustitie et portitor de alcaide sint cautati in D solidos”.

     Repetidas vezes se refere o órgão plural – as ou os justiças – que participavam nas reuniões do concelho destinadas a tratar dos interesses gerais do município; que recebiam queixas relativas a desavenças entre particulares; que, no concelho, estabeleciam os critérios relativos à instalação de moinhos; que eram, como referimos, “coutados” ou caucionados do mesmo modo que os titulares dos outros cargos do município; e eram entregues, com os seus bens, ao braço justiceiro do Mestre da Ordem, no caso de se deixarem arrastar pelas tentações da venalidade ou do compadrio. Dois desses “justiças” participaram como testemunhas na outorga do foral. Por tudo isso, somos levados a crer que se tratava das pessoas que exerciam funções idênticas às dos alvazis da região de Coimbra ou dos alcaldes de outras localidades. Os assuntos da justiça particular que não necessitavam de ir a julgamento dos “justiças” ou do concelho, especialmente os delitos comuns mais frequentes, eram tratados, pelo menos em primeira instância, pelo mordomo. Se a respeito do saião nada se acrescenta, merece atenção a cláusula relativa ao almotacé, que, surgindo pela primeira vez nos “Decretos” ou Posturas coimbrãs de 1145, começa a ser referido nos forais, em 1174.

     2.3. O regime tributário.

     No âmbito fiscal, Tomar seguia as normas de Coimbra, sendo a tributação de base constituída pela jugada de dezasseis alqueires, a pagar pelos peões, e por um oitavo da produção do linho e do vinho, a que se acrescentava a lagarádiga, que consistia num almude de vinho enquanto a produção não atingisse os cinco quinais, ou de um quarto, daí para cima. Como em Coimbra, também os donos de bestas de carga que fizessem transportes de aluguer para eiras ou lagares ficavam obrigados ao foro de almocrevaria, isto é, a fazer ou a pagar o correspondente ao serviço de um dia em cada ano. Uma atenção especial mereciam os moinhos, devendo os moleiros respeitar o que acerca da construção das respectivas “cambas” lhes fosse ordenado, sendo de um em cada dezasseis alqueires o foro a pagar pela moagem.

     2.4. A justiça.

     A razão que deu origem ao segundo foral de Tomar foi, como referimos, a necessidade de dotar os órgãos da justiça local de um código mínimo de normas pelas quais os munícipes, em geral, e os órgãos de governo local, em particular, pudessem pautar a sua actuação. A maior parte das cláusulas da carta de 1174 tinha como objectivo o estabelecimento de princípios e regras de procedimento na administração da justiça e a definição das coimas aplicáveis aos delitos. Essas normas generalizaram-se-iam noutros forais, constituindo um precioso testemunho da jurisprudência da época. Princípios que alguns séculos depois viriam a ser violados com frequência tornaram-se uma regra geral no século XII: ninguém podia ser condenado, sem previamente ser julgado; o julgamento tinha de se basear na averiguação dos factos; ninguém podia ser julgado, sem que antes fosse apresentada uma queixa perante os órgãos da justiça. Admitia-se a intervenção de “vozeiros”, isto é, de procuradores ou advogados, mas exigia-se que tivessem uma carta que os habilitasse a apresentarem-se nessa qualidade e que dessem outras garantias materiais e pessoais, o que naturalmente se destinava a acabar com os oportunistas que se faziam “vozeiros” para extorquir dinheiro aos cidadãos[35].

 

Regime fiscal adoptado na área de Viseu




 

[1] Temática recorrente na sua obra. Cf. José Angel García de Cortázar e outros, Organización social del espacio en la España medieval. La Corona de Castilla en los siglos VIII a XV, Barcelona, 1985, p. 11-42; Idem,  Del Cantabrico al Duero: trece estudios sobre organización social del espacio en los siglos VIII a XIII, [Santander], Universidade de Cantabria / Parlamento de Cantabria, 1999, p. 15-43; Idem, Las Formas de Organización Social del Espacio del Valle del Duero en la Alta Edad Media: de la espontaneidad al control feudal, em Fundación Sanchez-Albornoz, Despoblación y Colonización del Valle del Duero – Siglos VIII-XX, IV Congreso de Estudios Medievales, Avila, 1995, p. 13-44. Nesta colectânea, a p. 157-227, cf. Emma Blanco Campo, Valles y Aldeas: Las Asturias de Santillana. As comunidades de vale melhor estudadas são, porém, as que floresceram no norte da Península.

[2] T.T., F. A., m. 8, n.º 6. Publicado em D.M.P.-I, p. 71, Inéditos de História de Portugal, tomo IV, p. 579. Cf. Maria Helena da Cruz Coelho, O conjugar da tradição e inovação: no concelho de S. Martinho de Mouros, em “Revista de História” X (Centro de História da Universidade do Porto, 1990), p. 17-25.

[3] Como tivemos ocasião de observar em Origens dos Municípios Portugueses, a forma através da qual se fez o registo deste foro pode justificar o estropiamento de uma ou outra passagem: sirvam de exemplo a expressão “per meyo”, em vez de “premeiro” (= primeiro), e o caso, mais flagrante, da subscrição, em que se juntam, no mesmo ano de 1121, D. Teresa, D. Henrique e o infante D. Afonso Henriques!

 [4] T.T., F. A., m. 8, n.º 9; m. 12, n.º 3, fl. 13 v.º; Gav. 15, m. 7, n.º 6; m. 16, n.º 13; F. S. C., fl. 2; F. V., fl. 57 v.º. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 354-355, D.M.P.-I, p. 30-31. 

 [5] T.T., F. A., m. 8, n.º 9; m. 12, n.º 3, fl. 13 v.º; Gav. 15, m. 7, n.º 6; m. 16, n.º 13; F. S. C., fl. 2; F. V., fl. 57 v.º. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 354-355, D.M.P.-I, p. 30-31. 

[6] T.T., F. A., m. 8, n.º 9; m. 12, n.º 3, fl. 13 v.º; Gav. 15, m. 7, n.º 6; m. 16, n 13; F. S. C., fl. 2; F. V., fl. 57 v.º Publicado em P.M.H.-L.C., p 354-355, e D.M.P.-I, p 30-31.

[7] T.T., Sé de Viseu, m. 1, n.º 29. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 360-361, e D.M.P.-D.R., p. 81-82.

[8] Em Origens dos Municípios Portugueses, 1.ª ed., p. 67, 2.ª ed., p. 63, considerámo-lo “um tributo mais reduzido que o tradicional e por isso designado de jugada nova”.

[9] De facto, no foral outorgado por volta de 1136, segundo parece, e confirmado em 1187 impunha-se ao mordomo que recebesse apenas metade da “ração” ou do tributo dos jugários empobrecidos: “si aliquis ex ellis qui tributarii sum in paupertate devenerit tam homo quam vidua et suam hereditatem alteri ad laborandum dederit maiordomus accipiat medietatem racionis (...)”. Aliás é bem esclarecedora a cláusula seguinte a essa, que estabelece o valor da ração, que é de uma teiga por cada moio: “iugadarii qui in cellario dant iugadam dent de I.º modio unam taleigam”.

 [10] T.T., Livros Recolhidos por José Basto, n.º 30, Tombo Velho da Sé de Viseu, fl. 45. Publicado em D.M.P.-D.R., p. 90.

[11] T.T., F. A., m. 8, n.º 19; m. 12, n.º 3, fl. 1 v.º; F. S. C., fl. 29-29 v.º; F. V., fl. 27 v.º. Publicado em P.M.H.-L.C., fl. 460-462; D.D.S., p. 26. 

[12] O prazo dado aos cavaleiros para adquirir nova montada alargava-se de um para dois anos. Previa-se igualmente a fruição dos privilégios, durante a velhice ou quando se caísse em situação de pobreza, assim como em favor da viúva e dos órfãos. As propriedades dos cavaleiros beneficiavam do estatuto de isenção, em qualquer lugar do reino em que se situassem.

[13] T.T., F. A., m. 1, n.º 15. Encontra-se também, numa cópia em vulgar, na Gav. 20, m. 11, n.º 40, fl. 3 v.º, e em F. V., fl. 154. Publicado em P.M.H.-L.C., p 367-368, e D.M.P.-I, p 48-50.

[14] Já anteriormente observámos que a referência aos ministeriales será de situar na remodelação deste foral realizada a seguir aos meados da década de trinta, o que lhe retira o carácter de pioneiro, atribuído por Luís G. de Valdeavellano.

[15] T.T., F. A., m. 12, n.º 3, fl. 24 v.º; F. S. C., fl. 39 v.º; F. V., fl. 58. Publicado em P.M.H.-L.C., p 583-584.

[16] É provável, por conseguinte, que o foral de Vilarinho da Castanheira contenha a versão mais próxima do diploma inicialmente outorgado a Sernancelhe.

[17] T.T., Gav. 15, m. 7, n.º 11; F. A., m. 12, n.º 3, fl. 23 v.º; F. S. C., l. 35 v.º-36 v.º; F. V., fl. 44 v.º Publicado em P.M.H.-L.C., p. 362-365.  

[18] Mais em pormenor, sobre este aspecto, cf. Origens do Municípios Portugueses, 1.ª ed., p. 70-72, 2.ª ed., p. 65-67.

[19] Corresponderão a uma segunda etapa da elaboração deste documento os artigos que vão desde esta cláusula até àquelas onde se fixam os tributos ou obrigações dos mesteirais. Estas podem datar da mesma época ou de época posterior e serem ou não coetâneas das últimas cláusulas, que versam questões de justiça. Pode mesmo questionar-se se todos os artigos que referimos como pertencentes à primeira parte serão de facto coetâneos, pois encontram-se aí duas listas de coimas e a segunda, que se inicia com o parágrafo alusivo à violação do domicílio, parece de uma data diferente, não tanto por estar isolada da primeira através de um parágrafo que trata de outra matéria mas sobretudo porque o valor das coimas atinge quantitativos desproporcionados em relação aos da primeira lista. Nos clausulados que constituem a segunda e a terceira parte, encontram-se repetições e divergências em relação à primeira, assim como novos elementos que noutros documentos apenas surgem em época mais tardia, como sucede com a referência aos besteiros (que aparece no foral concedido a Lisboa, Coimbra e Santarém, de 1179) e aos mesteirais (idênticas referências encontram-se em forais relativos a áreas próximas desta, a partir de 1136 e 1137).

[20] Sobre o significado da expressão “homens-bons” ou “boni homini” através dos tempos, cf. Maria del Carmen Carlè, Boni Homines y Hombres Buenos, “Cuadernos de Historia de España” XXXIX-XLII, Buenos Aires (1964-1965), p. 133-168.  Este ensaio, que estuda a expressão desde a antiguidade romana até ao século XIII, baseia-se sobretudo, para os últimos séculos, na documentação castelhana e leonesa.

[21] A primeira referência aos balestariis encontra-se no foral de Tentúgal; no de Miranda do Corvo, mencionam-se os “sagitários”.

[22] “Et illos baesteiros qui nobiscum fuerint habeant foro de caballario”.

[23] A besta difundiu-se na Europa no século XII, havendo quem diga que foi trazida de Bizâncio por altura das Cruzadas. Tendo-se revelado uma arma extraordinariamente mortífera, e perante a divulgação que já tinha alcançado, o concílio de Latrão proibiu o seu uso contra os cristãos. Há mais referências aos besteiros, em documentação posterior, mesmo no século XII, embora a sua organização num corpo especial seja do terceiro quartel do século XIV.

[24] Na luta realizada como meio de “prova” em pleitos contenciosos, o vencido pagava um bragal como imposto de justiça; aquele que, já em campo, desistisse, antes de iniciar a pugna, daria apenas metade.

[25] T.T., F. A., m. 3, n.º 1. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 386.

[26] Certo é que este diploma, no foro penal, remete para o de Pombal, o que só pode ter duas explicações: ou se trata de um foral desaparecido, ou então no de Redinha houve uma pequena interpolação, posterior a 1176.  Esta última solução parece-me a mais provável, uma vez que a pena a aplicar ao homicídio e ao rouso –  inserida de um modo abrupto na redacção da respectiva cláusula do foro de Redinha –  ainda não aparece na carta pombalina de 1174, pelo que, a existir um foral anterior que a fixasse, estaríamos perante uma regressão inexplicável. Como referimos, o foral concedido a Tomar, em 1174, e depois transmitido a Pombal, em 1176, surgiu para responder à necessidade de normas claras sobre o procedimento jurídico e penal.

[27] O foral de Redinha contém alguns pormenores específicos, relacionados com os interesses da entidade outorgante ou resultantes de uma evolução da organização municipal que estava em curso nesta área. Aos interesses da entidade outorgante correspondem as disposições que proíbem doar as terras ou deixá-las em testamento a não ser à Ordem, ou vendê-las senão a um “vizinho”, de tal maneira que continuassem a pagar o mesmo foro.

[28] T.T., F. V., fl. 89 v.º; Ordem de Cristo, Convento de Tomar, II Livro das Escrituras. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 388-389. 

[29] T.T., F. A., m. 2, n.º 9. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 398-399.

[30] T.T., Ordem de Cristo, II Livro das Escrituras. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 399-401. 

[31] T.T., F. A., m. 1, n.º 4; m. 12, n.º 3, fl. 31 v.º; F. V., fl. 20. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 528-530.  

[32] A.N. T.T., F. A., m. 1, n.º 7.  Publicado em P.M.H.-L.C., p. 517-518.

[33] T.T., F. V., fl. 152.  Publicado em P.M.H.-L.C., p. 591-592.  Outorgada pelo Abade do convento de Lorvão, também a carta de foro de Abiul (publicada em P.M.H.-L.C., p. 534-535) remete para os foros de Pombal, designadamente em matéria de coimas.

[34] Trata-se de um “couto”, isto é, de uma norma penal que estabelece uma multa ou indemnização de 500 soldos, a pagar pelo agressor, na ocorrência de algum acto criminal contra as pessoas que exercessem estes cargos, a somar à importância da coima correspondente a um delito do mesmo género contra qualquer munícipe. No foral de Castelo Branco intervêm, como confirmantes, o juiz de Tomar, Pedro Martins, e o “superiudex” de Redinha, Gonçalo Catalão.

[35] Para a implantação geográfica, confira-se o mapa que acompanha o capítulo anterior.