sábado, 30 de outubro de 2021

2.1 - Período condal

       1. Período leonês.

Consolidada a supremacia que, desde a segunda metade do século IX, detinham sobre o vale do Douro, os exércitos cristãos, com Fernando I de Castela e Leão (1037-1065), avançavam para sul, garantindo o domínio de Lamego, Viseu e Coimbra e assegurando desse modo o controle da linha do Mondego.

Se inicialmente entre os combatentes predominava o grupo dos peões, a que se juntavam os militares montados, ainda sem estribos e sem esporas, em ginetes ou cavalos também desprovidos de ferraduras, a partir do século XI, a crescente utilização do ferro e o aperfeiçoamento da atrelagem aumentaram a importância da cavalaria, reduzindo a função da peonagem ou infantaria. Os cavaleiros, com elmos e escudos metálicos, em cima de cavalos protegidos com armaduras, segurando-se com a ajuda dos estribos e estimulando o animal com as esporas, exerciam uma actividade por isso mais especializada e dispendiosa e consequentemente ligada ao pagamento de soldadas e à fruição de vários benefícios, que conduziam à sua promoção social. Enquanto esta minoria formava o exército ofensivo, a que competia seguir na vanguarda da reconquista, os peões, além de amanharem a terra, ocupavam-se da sua vigilância, a partir de locais estratégicos, e da construção e manutenção de estruturas de defesa (obrigação designada pelo vocábulo anúduva).

No foral outorgado a S. João da Pesqueira não se vislumbra ainda a diferenciação militar e social[1], que encontraremos de seguida. Todos, com efeito, se colocavam em pé de igualdade perante a guerra[2] e, uma vez convocados (por chamamento ou apelido), eram obrigados a avançar contra os mouros até onde pudessem e contra cristãos só até onde no mesmo dia fossem capazes de ir e regressar, o que pressupõe, no primeiro caso, a guerra ofensiva e, no segundo, apenas as actividades de defesa. Várias cláusulas deste documento reflectem os quadros jurídicos do reino de Leão, mas a povoação, ao contrário do que suporiam os defensores da tese do ermamento, não era criada ex nichilo, pois, além de uma pesqueira de construção recente, que deu o nome à localidade, havia outras mais antigas.

Sabemos que funcionavam concelhos em áreas como Arouca, Moldes e S. Martinho de Mouros. Em 1091 “filii multorum bonorum hominum et totum concilium de Arauca” intervêm na resolução de uma contenda entre o mosteiro e vários herdeiros[3]. Pela mesma data e na resolução de uma contenda semelhante, participavam “multi filii bonorum hominum de Arauca et totum concilium de Ribulo Molides”[4].

Dos forais do grupo de S. João da Pesqueira, até porque recolhe normas elaboradas na mesma época, embora de índole mais breve, avizinha-se o foral de S. Martinho de Mouros, confirmado por D. Teresa, a de 13 de Março de 1121, mas apenas conhecido através de uma versão posterior, de 11 de Junho de 1342[5]. Neste ano, o juiz, dois vereadores e três tabeliães do lugar, reunidos na igreja local, por convocação do meirinho e na sua presença, reduziram a escrito os seus usos e costumes[6], incluindo a tradução em vernáculo do foral teresiano e várias disposições ditadas pelo corregedor[7]. Nesse foral dizia D. Teresa: “fazemos e confirmamos carta de firmydõe de vosso foro a vos homens de Sam Martinho de Mouros, o qual ouvestes em tempo de meu avoo rey dom Fernando e de meu padre rey dom Affonsso” e acrescenta que eles ”derom esse castelo com este foro ao alvazil dom Sesnando como vos tevessem per el”.

Do entendimento com as comunidades existentes em Lamego e Viseu, não ficaram testemunhos escritos, mas de Coimbra sabemos que Fernando Magno confiou ao alvazil Sisnando a instalação dos homens e a distribuição das terras[8].

Com Afonso VI de Castela (1072-1109), o avanço dos cristãos continuou em direcção ao sul, impelindo a fronteira com os muçulmanos para a linha do Tejo. Em Abril de 1085, confirmou aos moradores de Coimbra a posse das terras que lhes atribuíra o alvazil, providenciou contra a sua alienação a favor de estranhos[9] e firmou um pacto que podemos considerar como o primeiro foral concedido a Coimbra. Este pacto seria reconfirmado no verão de 1093, pouco antes de Santarém, Lisboa e Sintra serem colocadas sob o domínio cristão[10].

O conde D. Raimundo, a quem fora confiado o governo do território, perdeu novamente Lisboa para os muçulmanos, de tal modo que apenas Santarém viria a receber um foral outorgado por D. Afonso VI, em 13 de Novembro de 1095[11]. Este foral de Santarém apresenta um articulado com disposições que são nitidamente tributárias da tradição plasmada nos forais leoneses, de que já se apresentou o exemplo o de S. João da Pesqueira, mas testemunha, ao mesmo tempo, as mutações que se operaram no meio urbano, entre as quais são de mencionar a integração de cristãos, judeus e mouros na população da cidade, assim como a diferenciação social, pois de entre o comum dos habitantes sobressaem os “maiores civitatis” (também referidos como pertencentes ao grupo dos “meliorum civitatis”), que serão naturalmente os “milites”, de que se desejam as herdades bem guarnecidas. Entre os que permaneciam em Santarém com o objectivo de defender a cidade, contavam-se os militares que dispunham de cavalo e de armadura (lorica) fornecidos ou pagos pelo monarca[12]

 

        2. D. Henrique e D. Teresa.

 2.1. A premência de uma acção constante com o objectivo de consolidar o domínio sobre o território já recuperado entre o Douro e o Tejo e a derrota do conde D. Raimundo terão determinado a entrega ao conde D. Henrique do governo do território peninsular voltado para o Atlântico a sul do rio Minho. Esta mudança política correspondia ao início de uma nova fase, em que a atenção dos governantes, para além das actividades bélicas, se dirigia para a organização administrativa e o desenvolvimento económico do território.

Assim, na área citra-duriense, correspondente ao núcleo originário do condado portucalense, D. Henrique procurou lançar as bases do desenvolvimento de dois pólos económicos regionais — Guimarães[13] e Constantim[14] — enquanto, na área mais a sul as suas preocupações se orientaram mais no sentido da consolidação estratégica, por um lado, com o reforço do papel da cidade de Coimbra e a cativação do apoio dos seus habitantes, e, por outro lado, com o reforço da linha natural do Mondego, a que esteve ligada a outorga dos forais de Sátão[15], Azurara[16], Tavares[17], Tentúgal[18] e Soure[19], sem excluir a colaboração de entidades já instaladas no terreno, como sucedeu com o mosteiro de Lorvão em relação a Santa Comba e Treixedo[20].

 2.2. Pode afirmar-se que D. Teresa continuou a política de D. Henrique[21], estimulando o desenvolvimento de dois centros regionais, no Entre Douro e Minho — Ponte de Lima[22] e Porto[23], este por iniciativa do Bispo D. Hugo, viabilizada com a prévia doação do couto por parte da “rainha”.

Pelo que respeita aos espaço meridional do condado, a acção de D. Teresa, especialmente na área de Viseu, ficou testemunhada pela outorga do foral a esta cidade[24], a par dos que foram concedidos a Ferreira de Aves[25] e a Sernancelhe[26].

A outorga do foral de Ferreira de Aves (1126) integrou-se ao mesmo tempo na política de estímulo ao desenvolvimento da cavalaria vilã e de incentivo ao florescimento de pólos de dinamização económica — claramente anunciada pela presença dos mesteirais.

O foral de Sernancelhe é de aparente subscrição senhorial, mas de facto o outorgante deveria agir na qualidade de alcaide nomeado por D. Teresa. Ainda na área de Coimbra, foi o Bispo desta cidade que outorgou o foral de Arganil[27].



[1] T.T., F.A., m. 8, n.º 4. Publ. em Documentos Medievais Portugueses – Documentos Régios, I, p. 398. Cf. António Matos Reis, Origens dos Municípios Portugueses, 1.ª ed., Lisboa, 1991, p. 37 (2.ª ed., ibidem, 2002, p. 40).

[2] A única desigualdade que se antevê é a das fortunas, referida a propósito das “osas” que devia dar à sua noiva o homem que desposasse uma viúva.

[3] Filomeno Amaro Soares da Silva, Cartulário de D. Maior Martins (século XIII), Arouca, Associação da Defesa do Património Arouquense, 2001, p. 33-34.

[4] Idem, ibidem, p. 41.

[5] T.T., F.A., m. 8, n..º 6Publicado em D.M.P.-I, p. 71; Inéditos de História de Portugal, tomo IV, p. 579.

[6] Como já referimos em Origens dos Municípios Portugueses, a forma de elaboração da versão conhecida deste foral justifica o estropiamento de algumas passagens: sirva de exemplo a expressão “per meyo”, em vez de “premeiro” (= primeiro), e o caso flagrante da subscrição, em que se juntam, no mesmo ano de 1121, D. Teresa, D. Henrique e o infante D. Afonso.

[7] Cf. Maria Helena da Cruz Coelho, O conjugar da tradição e inovação: no concelho de S. Martinho de Mouros, em “Revista de História”, vol. X, Porto, 1990, p. 17-25.

[8] Cf. documentos citados na nota seguinte.

[9] T.T., Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 7 v.o-8 v.o. Transcrito por Rocha Madahil, em Liv. Preto da Sé de Coimbra, Universidade de Coimbra, vol. I, 1977, p. 21-24.

[10] T.T., Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 8-8v.º. Transcrito por Rocha Madahil, em Liv. Preto da Sé de Coimbra, Universidade de Coimbra, vol. I, 1977, p. 24.

[11] T.T., Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 10-11. Transcrito por Rocha Madahil, em Liv. Preto da Sé de Coimbra, Universidade de Coimbra, vol. I, 1977, p. 29-31.

[12] Mais em pormenor, cf. António Matos Reis, Origens dos Municípios Portugueses, Lisboa, 1991, p. 40-42 (2.ª ed., ibidem, 2002, p. 43-44).

[13] T.T., F.A., m. 12, n.º 3, fl. 51 v.º-52; F.V., fl. 70 v.º; Gav. 15, m. 8, n.º 20; F.S.C., fl. 1. Sobre o foral de Guimarães, seu enquadramento histórico e relações com o de Constantim, cf. António Matos Reis, O Foral de Guimarães, primeiro foral português, e o contributo dos burgueses para a fundação de Portugal. Em «II Congresso Histórico de Guimarães “D. Afonso Henriques e a sua época – Actas”», vol. 4, Guimarães, 1996, p. 45-66.

[14] T.T., Gav. 15, m. 1, n.º 12; Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 49 v.º; F.A., m. 12, n.º 3, fl. 49 v.º; F.V., fl. 117.

[15] T.T., F. A., m. 8, n.º 9; Gav. 15, m. 7, n.º 6; Gav. 15, m. 16, n.º 13; F. A., m. 12, n.º 3, fl. 13-14; F. S. C., fl. 1 v.º; F. V., fl. 57 v.º.

[16] T.T., F. V., fl. 12 v.º.

[17] T.T., Gav. 15, m. 13, n.º 9 e m. 16, n.º 8.

[18] T.T., Livro Preto da Sé de Coimbra, fl.213 v.º; T.T., Sé de Coimbra, m. 1 (régios). Publicado em Madahil, Liv. Preto da Sé de Coimbra, Universidade de Coimbra, vol. 3, p. 232.

[19] T.T., F. A., m. 3, n.º 6, 7, 8, 9; F. A., m. 12, n.º 3, fl. 11-12; F. S. C., fl. 1-1 v.º, C.R., Conv. de Cristo, Tomar, m. 1, régios, doc. 9; F. V., fl. 21 v.º.

[20] Sobre os forais outorgados no tempo do Conde D. Henrique, cf. António Matos Reis, Origens dos Municípios Portugueses, Lisboa, 1991, p. 45-61 e 77-83 (2.ª ed., ibidem, 2002, p. 47-58 e 71-76).

[21] Sobre os forais outorgados no tempo de D. Teresa, cf. António Matos Reis, Origens dos Municípios Portugueses, Lisboa, 1991, p. 62-76, 84-87 e 92-93 (2.ª ed., ibidem, 2002, p. 59-69 e 83-84).

[22] T.T., F.A., m. 9, n.º 4; F.A., m. 12, n.º 3, fl. 52-53; F.V., fl. 76; Gav. 15, m. 5, n.º 3; Gav. 18, m. 3, n.º 27; F.S.C., fl. 1 (adenda inicial). Cf. António Matos Reis, Fundação do Município – Foral de D. Teresa em Ponte de Lima no Tempo e no Espaço, Ponte de Lima, 2000, p. 59-76.

[23] T.T., Convento de Arouca, m. 2, n.º 28, fl. 51; Corpo Cronológico, parte II, m. 88, n.º 9. Cf. António Matos Reis, O primeiro foral do Porto, em Tempos e Lugares de Memória – I Congresso sobre a Diocese do Porto, 5 a 8 de Dezembro de 1998, Actas, II vol., Porto, 2000, p. 19-31.

[24] T.T., Sé de Viseu, doc. 29 e 2.ª incorp., m. 1, n.º 33; F.A., m. 8, n.º 19; F.A., m. 12, n.º 3, fl. 1 v.º; F.S.C., fl. 29; F.V.,fl. 27 v.º; Gav. 15, m. 7, n.º 7. Cf. Maria Helena da Cruz Coelho, O Concelho e senhorio de Viseu em Cortes, em Actas do Congresso “Infante D. Henrique, Viseu e os Descobrimentos”, Viseu, Câmara Municipal, 1995, p. 83-86.

[25] T.T., F.A., m. 1, n.º 15; F.V., fl. 154.

[26] T.T., F.A., m. 12, n.º 3, fl. 23 v.º-24; F.V., fl. 44 v.º; Gav. 15, m. 7, n.º 11; F.S.C., fl. 35 v.º-36 v.º.

[27] T.T., Liv. Preto da Sé de Coimbra, fl. 255 v.º. Publicado em D.M.P.-D.P., p. 419-420.