sábado, 30 de outubro de 2021

2.5 - D. Sancho II

      Presumivelmente, os registos da Chancelaria de D. Sancho II desapareceram durante as perturbações que marcaram o fim do seu reinado e a tomada do poder por D. Afonso III. D. Sancho II conservou, com efeito, o chanceler Gonçalo Mendes e o notário Domingos Peres, a que depois sucederam Mestre Vicente, deão de Lisboa, até à sua nomeação como Bispo para a diocese de Idanha[1], e Henrique Martins[2], e é natural que os próprios funcionários se preocupassem com o nível dos seus serviços, inclusivamente com a elaboração do registo dos documentos que lhes passavam pelas mãos. Desaparecido esse registo, é difícil ou mesmo impossível avaliar o número de documentos produzidos durante o reinado e até o próprio ritmo de produção desses documentos e as suas temáticas, ou, o que é o mesmo, os assuntos que mereceram a atenção da cúria régia.

        Através da documentação que se conhece, poderá concluir-se, no entanto, que na primeira metade do reinado de D. Sancho II, talvez com um ritmo menos acelerado, se manteve a orientação seguida no reinado anterior.

         1. A iniciativa régia.

     Entre os forais outorgados pelo monarca nas margens setentrionais do Alto Douro, o de Freixo de Espada Cinta (derivado do paradigma de Numão) serviu de modelo ao de Santa Cruz da Vilariça (futura Torre de Moncorvo)[3]. O de Vinhais, referido num acordo de 1224 com o Arcebispo de Braga[4], teria como referência o de Bragança.

      A colonização agrária prosseguiu com a criação de novas comunidades de aldeia ou a confirmação de outras previamente existentes, em benefício dos moradores de localidades como Sanguinhedo[5], Cidadelhe[6], Noura e Murça[7], Carva[8], Abreiro[9] e Satorninho[10].

      Na margem sul do rio Douro, recebeu foral o concelho de Barqueiros[11] (1223), ainda que, mais tarde, os funcionários da Chancelaria encarregados do seu registo anotem a irregularidade do documento que puderam compulsar e talvez não fosse o original — “inquisitores viderunt cartam istam sine sigillo et signo” (os inquiridores viram esta carta sem selo e sem assinatura).

        A Castelo Mendo[12], no distrito da Guarda, em simultâneo com a criação da primeira feira de longa duração a que entre nós há referência, foi outorgado um foral segundo o modelo da Guarda, também ele da família do de Numão.

        Na Beira Baixa, o rei outorgou o foral de Sortelha[13], que emanou do modelo de Évora, através de Penamacor e de Proença-a-Velha, assim como o de Idanha-a-Velha[14] (1229), e, mais a sul, o de Elvas[15] (1220), que tomou por modelo directamente o de Évora.

      O último documento desta índole que recolheu a subscrição de D. Sancho II foi a carta de foro concedida, em 1230, aos povoadores da aldeia de Mós de Parada[16], em Castro Daire.

        2. A iniciativa dos particulares.

        Todos os forais outorgados desde 1230 até 1246 foram da iniciativa dos mestres das ordens militares, de bispos e de abades de alguns conventos:

     –  O abade de Cedofeita, em 1237, outorgou aos moradores do lugar uma carta de foro[17] que tomava como paradigma o do Porto.

     –  O Mestre da Ordem do Templo deu à povoação de Ega (1231) um foral inserido na tradição coimbrã[18], tal como o que o abade do mosteiro de Arganil concedeu aos habitantes de Cepo (1237)[19], enquanto o abade do mosteiro de Tarouca assinou a carta de foro de Figueiró dos Vinhos (1243)[20].

     – O Bispo de Idanha outorgou a carta de foro de Moreira de Castelo Mendo (Amoreira, no actual concelho da Guarda)[21], seguindo o foral de Castelo Mendo, assim como o de Salvaterra do Extremo (1229)[22], segundo o modelo de Pinhel, e o de Alter do Chão (1232)[23], que se reportava ao de Abrantes, filial do de Évora.

     – Acompanhando o mesmo paradigma, isto é, o foral de Évora, o Prior do Hospital assinou o foral do Crato (1232)[24], que declarava tomar por modelo o de Nisa, desaparecido, e o de Proença-a-Nova (1244)[25]; o Mestre da Ordem de Santiago subscreveu o de Canha (1235)[26], segundo o formulário do de Palmela.

     – Ao Mestre de Avis deve-se a carta de foro da Ericeira (1229)[27], que um deslize do copista faz supor decalcado por um desconhecido foral de Vila Viçosa.

 

        3. Dinâmicas locais.

        Registam-se algumas situações peculiares, capazes de nos elucidar sobre a dinâmica das comunidades locais, como sucedeu com a freguesia de Correlhã, nos arredores de Ponte de Lima[28]. Os descendentes dos habitantes da “Villa Corneliana”, dos tempos da romanização, agora couto da Igreja de Santiago de Compostela, organizados como um município, povoado por uma centena e meia de famílias, tomavam consciência do seu valor como comunidade, apesar de verem frustrados os seus intentos de mudar para a obediência ao Arcebispo de Braga.

         



[1] Cf. António Domingues de Sousa Costa, Mestre Silvestre e Mestre Vicente, juristas da contenda entre D. Afonso II e suas irmãs, Braga, 1963.

[2] Idem, ibidem, p. 152.

[3] T.T., Ch. D. Af. III, liv. II, fl 68 v.o; F.V., fl. 133. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 601-604.

[4] Avelino de Jesus da Costa, Liber Fidei, Tomo III, Braga, 1999, p. 340-341, doc. n,º 897.

[5] T.T., Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 1; F.V., fl. 91. Cf. também Ch. D. Dinis, liv. I, fl. 184-184.

[6] T.T., F.A., m. 9, n.º 8, fl. 2; Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 17 v.º; F.V., fl. 105 v.º.

[7] T.T., Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 66 v.º-67; F.V., fl. 131 v.º.

[8] T.T., Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 63 v.º-64.

[9] T.T., F.V., fl. 132; Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 67-67 v.º.

[10] T.T., Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 23.

[11] T.T., Ch. D. Af. III, liv. II, fl. 29.

[12] T.T., Gav. 15, m. 3, n.º 9; Ch. D. Dinis, liv. I, fl. 38 v.o. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 610-612.

[13] T.T., Gav. 15, m. 3, n.º 7; Ch. D. Dinis, liv. I, fl. 39 v.o. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 608-610.

[14] T.T., Ch. D. Dinis, liv. I, fl. 74, liv. II, fl. 55. Publicado em P.M.H-L.C., p. 613-616, e em Colecção de Inéditos de Hist. Portuguesa, t. V, p. 405 (erradamente identificado como da Guarda).

[15] T.T., Gav. 6, m. 1, n.º 238; F.V., fl. 155. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 619-620.

[16] T.T., Gav. 15, m. 11, n.º 48.

[17] T.T., Gav. 15, m. 16, n.º 14. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 627-628.

[18] T.T., F.A., m. 1, n.º 13.

[19] T.T., Gav. 15, m. 7, n.º 9.

[20] T.T., F.A., m. 1, nº 4; m. 12, nº 3, fl. 31 vº; F.V., fl. 20. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 528-530.

[21] T.T., Tombo da Sé de Viseu. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 632.

[22] T.T., F.A., m. 3, n.º 4; Ch. D. Dinis, liv. I, fl. 76. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 616-618.

[23] T.T., F.A., m. 10, n.º 4. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 623-624.

[24] T.T., F.A., m. 10, n.º 9; Gav. 6, m. 1, n.º 30. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 624-625. Não se conhece qualquer versão do foral de Niza, citado pelo do Crato.

[25] T.T., Gav. 14, m. 3, n.º 26. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 630-632.

[26] T.T., Ord. de Sant.; L. dos Copos. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 626-627.

[27] T.T., Gav. 13, m. 6, n.º 31. Publicado em P.M.H.-L.C., p. 620-621.

[28] Cf. António Matos Reis, Entre Braga e Santiago de Compostela: A “Villa Corneliana” (freguesia de Correlhã, concelho de Ponte de Lima) na primeira metade do século XIII, em Os Reinos Ibéricos na Idade Média (Livro de Homenagem ao Prof. Doutor Humberto Carlos Baquero Moreno), vol. I, Porto, 2003, p. 255-264.