sábado, 30 de outubro de 2021

Epílogo

     Atraídos pela viagem que já outros iniciaram, na parte mais ocidental da Europa, incluindo a Península Ibérica, e de um modo especial no nosso país, acompanhámos os municípios portugueses, ao longo da Idade Média, numa longa caminhada de mais de três séculos, que se revelaram extraordinariamente fecundos.

     Assistimos ao seu nascimento, à sua implantação no território, ao esforço que os homens tiveram de despender para o dominar, para o valorizar, para o defender, para dele retirar os recursos necessários para a sua sobrevivência individual e para a sua comparticipação nas tarefas colectivas da defesa do território e do financiamento do Estado.

      As circunstâncias históricas, os programas políticos e a duração de cada um dos vários reinados repercutiram-se na acção desenvolvida pelos governantes, entre os meados do século XII e os finais do século XIV.

     O objectivo perseguido numa primeira fase foi o de estabelecer e consolidar o domínio do território localizado entre o Douro e o Tejo, instalar as populações, organizá-las na tarefa solidária de erguer um país, de o robustecer e de lhe proporcionar um futuro.

     As primeiras campanhas postas em marcha pelos monarcas leoneses traçaram uma diagonal a definir o cenário desta primeira fase: desde S. João da Pesqueira, através de Coimbra, até Santarém e Lisboa.

     A tradição leonesa, especialmente as cláusulas do Concílio de Leão de 1017, e algumas heranças do passado gentílico ou moçárabe, conforme os casos, caracterizaram as mais antigas cartas de foral. A renovação económica e social, que seguiu a reconquista, e o novo espírito que a acompanhou, baseado na iniciativa individual e na liberdade, conheceram as sua primeiras manifestações nos forais de que foram destinatários alguns burgos e outras póvoas, desde o início do governo do Conde D. Henrique, testemunhando a clara vontade de apoiar e incentivar o desenvolvimento do território.

     Ao mesmo tempo, na fronteira sul, mediante o estabelecimento de pactos de convivência e a elaboração de cartas de foro, procedia-se à integração no novo estado das populações moçárabes resgatadas ao domínio muçulmano e à fixação de colonos deslocados a partir dos territórios nortenhos.

     O reinado de D. Afonso Henriques, em correspondência com a sua longa duração, que apenas viria a ter paralelo no de D. Dinis, e de acordo com o seu carácter de reinado fundador, apresentou-se, em muitos aspectos, como excepcionalmente activo e criador. Foram outorgadas dezenas de forais, distribuídos por um espaço que se prolongou desde Melgaço até Évora, e fizeram a sua aparição quase todos os paradigmas que viriam a ser adoptados nesse e nos séculos seguintes. A partir de meados da década de trinta, reforçar-se-ia a autonomia dos municípios portugueses, com a generalização progressiva da faculdade de elegerem o juiz ou os juízes que presidiam à actividade dos concelhos.

     Associado à governação nos últimos anos da vida do seu progenitor, D. Sancho I governou com uma energia extraordinária, por vezes excessiva, sem esquecer qualquer parcela do território, mas colocando sob a tutela das ordens militares as áreas particularmente vulneráveis, especialmente nas frentes sudeste e meridional. No seu reinado, redobrou a atenção dispensada pelo governo central aos espaços transmontano e duriense.

     D. Afonso II, talvez condicionado pela sua compleição física mas sob a influência dos legistas formados no estrangeiro, centrou a sua actividade na organização da Chancelaria Régia, para a colocar ao serviço de um controlo mais eficiente do território, promovendo a recensão das cartas de foro anteriormente concedidas, para o que as fez submeter a confirmação, e pondo em marcha um levantamento da situação no terreno, particularmente no que respeitava à propriedade, o qual adoptou a forma de inquirições. Conjugar-se-á com a determinação, tomada  em 1211, de que todo o território português estivesse sob a alçada de um juiz,  e com a circunstância de em grande parte esses juízes serem os dos concelhos, o facto de a partir dessa data todos os municípios, mesmo aqueles em relação aos quais isso anteriormente não acontecia, incluindo os antigos burgos e póvoas, passarem a incluir no seu alfoz um espaço mais ou menos vasto.

     Na primeira década do seu reinado, pelo que se infere da documentação que chegou até nós, D. Sancho II deve ter continuado a orientação seguida nos reinados anteriores, no âmbito do povoamento e da organização do território, mas, no período que se segue a 1230, pouco mais se conhece do que a acção desenvolvida pelas ordens militares e pelo Bispo de Idanha, aliás da Guarda.

     Com D. Afonso III, foi publicamente reconhecido o papel dos municípios na administração do reino, tornando-se uma regra a sua presença nas cortes, onde a intervenção dos respectivos procuradores se revelou fundamental. Pelo que se refere à outorga de novos forais, foram credoras de uma especial atenção algumas áreas geográficas, no contexto da política de fronteiras que caracterizou este reinado: o Algarve, o leste do Alentejo, o Minho setentrional. Também a zona de Trás-os-Montes mereceu o desvelo do monarca, com a erecção de municípios e a criação de um considerável número de aldeias. D. Afonso III recorreu a novos instrumentos para incrementar o desenvolvimento do território, de modo a produzir reflexos positivos na economia local e a garantir entradas certas nos cofres do governo central, mediante a celebração de contratos relativos à cobranças dos impostos e coimas, através das “cartas de renda”, e a criação de feiras, repartidas por todo o território, com diversa periodicidade e duração, entre as quais se destacam as feiras anuais com a duração de duas semanas.

     Com uma longevidade que teve precedentes no tempo de D. Afonso Henriques, como já se referiu, o reinado de D. Dinis, ultrapassada já a época da reconquista e feitos os derradeiros acertos da fronteira, caracterizou-se por um intenso dinamismo, extensivo a várias sectores da vida portuguesa. Empreendendo várias deslocações, para se inteirar da situação do país real, D. Dinis, pelo que se refere aos municípios, optimizou em todas as frentes os projectos do reinado anterior. Ultimou-se o quadro municipal das áreas fronteiriças do Minho; Trás-os-Montes tornou-se objecto de frequentes intervenções, registando-se, a oeste, a reordenação da terra de Panóias, centrada em Vila Real, assim como do médio e alto Tâmega, e a leste uma atenção, sem termo de comparação noutros espaços, que se estendeu à Terra fria, ao Planalto e à Terra Quente transmontana e se reflectiu em ambas as margens do Douro superior. As mais importantes localidades da faixa oriental da Beira Alta – a área de Ribacoa – e parte da Beira Baixa, definitivamente integradas no reino após o tratado de Alcanizes, beneficiaram da oportuna confirmação dos seus forais e dos seus códigos de usos e costumes, vulgarmente designados como “forais extensos”. No Alentejo, o mapa da organização municipal completou-se com a outorga de uma dezena de forais, na sua maior parte concedidos a localidades distribuídas pela fronteira leste. No Algarve, elevou-se o número de povoações que receberam uma carta de foro segundo o modelo de 1179.

     Os pactos fiscais entabulados com os velhos municípios, através da emissão de “cartas de renda”, dando continuidade ao reinado anterior, contribuíram para a simplificação da máquina administrativa e para a crescente uniformização do regime fiscal, ao nível das relações entre o Rei e os concelhos.

     O reinado de D. Dinis foi aquele em cujo decurso maior número de feiras se criaram em Portugal, de norte a sul, com periodicidade muito diversificada: umas mais frequentes, destinadas ao escoamento dos produtos e ao abastecimento das povoações, a nível local; outras de periodicidade mensal e de expressão regional; e outras de maior duração, com alcance nacional e até transfronteiriço.

     Uma das áreas em que D. Dinis manteve um contacto permanente com os municípios foi a da defesa, em cujo âmbito sobressaem os cuidados com a edificação e a manutenção das fortificações, repartindo-se com frequência os encargos entre as duas partes: a cerca ficava a cargo da população local e a alcáçova a cargo do monarca.

     Entre as preocupações do Rei contaram-se também o adequado dimensionamento dos termos municipais e as vias de comunicação, sem excluir as respectivas pontes.

     Terminou com D. Dinis a idade heróica dos municípios portugueses. O meio século que se seguiu constituiu um período conturbado e difícil, durante o qual a instituição municipal sofreria as mais duras provações: as guerras, as epidemias, a crise demográfica, a cupidez dos poderosos, a política centralizadora dos monarcas. Pouco numerosas foram as localidades que durante este período adquiriram o estatuto da autonomia municipal e várias a perderam.

      O reinado de D. Afonso IV foi marcado não só pela guerra, de nefastas consequências para um grande número de municípios, mas sobretudo pela irrupção da peste negra, que desequilibrou trágica e irremediavelmente a economia e a vida social, com irreparáveis consequências, de sinal negativo, na ordem política.

     A tensão entre as autarquias e o poder central iniciou-se logo nos primeiros anos do reinado. A influência dos legistas e a difusão de novas concepções do poder que preparavam o estado moderno estiveram subjacentes a um conjunto de medidas que se apresentaram como destinadas a evitar os abusos cometidos pelos agentes do poder local, mas acabaram por tornar a governação distante dos cidadãos e por fazer depender as decisões de uma crescente multidão de funcionários do poder central. Nesta linha, o reinado de D. Afonso IV ficou assinalado pela publicação do Regimento dos Corregedores, pela gradual colocação dos municípios na dependência dos juízes de fora, pela progressiva substituição dos alcaldes e dos alvazis por vereadores, em princípio nomeados pelos corregedores, que agiriam cada vez mais em círculo fechado. A medida mais positiva do reinado de D. Afonso IV terá sido o “chamamento geral”, destinado a conter nos seus limites as jurisdições criminais e civis dos domínios privados.

     No governo, relativamente breve, de D. Pedro I, para além das intervenções pontuais, que continuaram na linha política do seu antecessor, designadamente a conclusão do “chamamento geral”, ouviram-se as queixas dos povos contra a fixação arbitrária das “conthias”, que se destinavam a basear em critérios contabilísticos o recrutamento das milícias municipais, designadamente dos cavaleiros, e repetiram-se nas cortes as reclamações contra os abusos dos funcionários do poder central. A campanha de confirmações dos foros e privilégios dos municípios, implementada nos primeiros anos do reinado, deverá ter sido empreendida com a finalidade de afirmar o poder de um príncipe que fora profundamente humilhado perante o seu país com o trágico destino de D. Inês de Castro.

     O reinado de D. Fernando constituiu o período mais desolador da história de Portugal, especialmente ao nível da organização do território e das relações do monarca com os municípios. Embora um número significativo dos problemas se devesse a dificuldades anteriores, particularmente à crise demográfica, económica e social desencadeada pelas sucessivas epidemias, não se vislumbra o fio condutor de uma política clara e coerente destinada a dar-lhes resolução. As consecutivas leviandades e tergiversações do monarca agravaram ainda mais esses problemas. Dificilmente se encontra um diploma a publicar uma decisão que não venha a ser contraditado por outro, alguns dias, semanas ou meses depois... e, por vezes, surge um terceiro, a ordenar o regresso à forma inicial! Esse tipo de atitude ocorreu em relação às anexações e desanexações e muito raramente à criação de novos municípios. A grande ritmo, sucederam-se as doações a particulares de territórios sob jurisdição municipal, com a finalidade de remunerar serviços prestados ou a prestar durante a guerra. Em contrapartida, abundaram as concessões de privilégios a vários municípios, umas vezes sem qualquer justificação e outras vezes apresentando-as como destinadas a compensar danos resultantes da guerra ou a recompensar a colaboração prestada no seu decurso, a ressarcir as populações dos abusos cometidos pelos poderosos, ou a procurar remédio para os males causados pelo despovoamento causado pela guerra e pelas epidemias. Tais privilégios consistiram na isenção dos encargos de dar pousada, de ceder as bestas de carga, de prestar determinados serviços à comunidade, de pagar talhas, fintas e outras peias, ou de participar em tarefas de índole militar, como a hoste, o fossado, a anúduva, a ronda, a guarnição das fronteiras e o serviço nas galés.

    

     A maioria dos forais outorgados do século XII até ao século XIV reporta-se expressamente a um dos paradigmas que se foram elaborando ao longo do século XII, embora muitas vezes o paradigma não seja citado nem reproduzido à letra, como sucedeu com frequência em Trás-os-Montes, nas margens do Douro e na órbita de Coimbra. As condições naturais e as circunstâncias históricas produziram entre várias comunidades uma afinidade que ultrapassou as meras relações de proximidade e vizinhança. É assim possível encontrar uma relação de parentesco entre uma grande parte dos municípios que se distribuem pela área mais ocidental, entre o Minho e o Vouga e, de igual modo, entre os municípios localizados nas margens do Mondego e dos seus afluentes; os forais de Trás-os-Montes denotam muitas semelhanças, que lhe advêm das tradições comuns e da antiga relação entre os nossos espaços fronteiriços e os de Zamora. Mais a sul, um paradigma comum, com a sua mais antiga expressão em Numão, consolidou a afinidade existente entre os municípios da Beira Alta, assim como entre os do Douro superior, que, embora artificialmente, não em razão da geografia espacial mas em razão de idêntica condição periférica, se prolongaria ao Minho setentrional e ainda a Aguiar de Pena. Nascidos do esforço duro da reconquista, os municípios da Beira Baixa e de uma boa parte do Alentejo adoptariam também um modelo de organização específico, relacionado com a proximidade em que inicialmente estavam da frente de combate. O foral de 1179 – na sua origem destinado às cidades de Coimbra, Lisboa e Santarém – representa o último termo de uma evolução, recolhendo e fundindo elementos da tradição coimbrã com outros do litoral nortenho e das áreas interiores da Beira Alta, sem excluir os contributos do paradigma de Évora.

     Todas estas matrizes de organização e de estatutos municipais foram elaboradas e tiveram a sua primeira difusão no século XII, sendo de todas a mais tardia a que teve por cenário o espaço de Trás-os-Montes.

    

     Os mais antigos municípios do noroeste português nasceram com a função de pólos dinamizadores de uma economia que já se não confinava ao sector agrário, mas que naturalmente contribuiu para a sua animação e desenvolvimento. Estavam relacionados com as principais vias de ligação entre o norte e o sul, entre o interior e o litoral do condado portucalense. Em tal situação se encontravam Constantim e Guimarães, Ponte de Lima e o Porto, a que se viriam a juntar Banho (S. Pedro do Sul), Barcelos, Melgaço e Vila Nova (Famalicão). O crescimento do Porto arrastará consigo algumas áreas mais próximas – Cedofeita e Vila Nova de Gaia – e outras localidades situadas na sua órbita, como Varzim, Bouças e Canidelo, a que se juntaram, numa ubiquação mais remota, Canavezes, Refoios, Aguiar de Sousa, Mesão Frio e Caldas de Aregos. No século XVI também nas margens do Vouga floresceriam as instituições municipais, assistindo-se ao irromper do município de Aveiro e de outros com menor protagonismo, como Avelãs (c. Anadia), Recardães (c. Águeda) e ainda Vagos, Cabanões (c. Ovar) e Fermedo (c. Arouca).

     Avançando mais para o sul, Coimbra, libertada do jugo muçulmano, conservava muitas das tradições económicas, sociais e religiosas do seu passado moçárabe, cuja influência alastrava, com múltiplas graduações, a toda a bacia do Mondego e se reflectia, muito embora com menor intensidade, noutras localidades situadas mais a norte e a sul, até alcançar Leiria e Sintra. Nas margens do Dão, a influência tornou-se, de facto, menos intensa, possivelmente devido a uma considerável afluência de populações migradas do norte. Ao contrário, a influência de Coimbra, pela mão dos Templários, irradiou pelos vales do Arunca, tributário do Mondego, e do Nabão, daí se estendendo ao vale do Zêzere, tributário do Tejo.

     O Douro superior serviu de berço a um dos mais antigos forais, outorgado a favor de uma localidade pertencente ao território do futuro Portugal, e de berço serviria também, três quartos de século depois, ao paradigma de uma das mais importantes famílias de forais, o foral de Numão, embora o foral de Trancoso e outros que deste derivam passem, com frequência, a referir como modelo um desconhecido foral de Salamanca, talvez porque assim o preferiu designar o seu primeiro outorgante, Fernando II de Castela. Foi concedido a numerosas localidades da Beira Alta e a outras situadas a norte do rio Douro, na franja meridional de Trás-os-Montes. A sua índole de foral de fronteira, e inclusivamente o benigno estatuto fiscal concedido aos moradores, fizerem dele um paradigma adequado a espaços periféricos, razão que explica a sua concessão a Contrasta (Valença) e depois a outras localidades do Alto Minho, assim como a Prado e a Lanhoso, e, mais para leste, a Aguiar de Pena.

     O nordeste transmontano foi a última área do Portugal nortenho a entrar na história dos municípios. A primeira entrada aconteceu no início do reinado de D. Sancho I, com a fundação dos municípios de Bragança, em 1187, de Penarroias, pela mesma data, e, um pouco mais tarde (1208), de Rebordãos, aos quais, em data difícil de precisar mas antes de 1224, se juntou o de Vinhais. Criados estes pontos de apoio, será em pleno reinado de D. Afonso III que o processo se intensificará, com a entrada em cena de novos centros em Chaves, Mogadouro, Monforte de Rio Livre, e Montalegre, prosseguindo, sob a égide de D. Dinis, com Miranda, Lamas de Orelhão, Mirandela e Valpaços, enquanto, a sudoeste, a terra de Panóias se reorganizava à volta de Vila Real. O longínquo passado leonês continuava presente nas referências a um desaparecido paradigma zamorano, cuja característica mais convidativa terá sido a leveza da carga fiscal imposta aos munícipes, sendo também frequente, e precoce em relação a outras áreas do país, a referência à actuação de dois juízes (e, em casos excepcionais, de três), que, muito provavelmente, no quotidiano de vários municípios transmontanos, substituíam  (ou constituíam) o “concelho restrito”.

     O foral de Évora, que iria ter numerosa prole – foi, ao que parece, o paradigma mais vezes repetido – adoptou um formulário de além-fronteira, um foral de Ávila também desaparecido. Seria um estatuto adequado a municípios situados na frente da reconquista, com uma forte presença dos militares, uma fiscalidade diminuta e uma dependência do “palácio”, isto é, do governo central, ou, se fosse o caso, dos poderes senhoriais, maior do que noutros municípios. As suas áreas de expansão preferenciais foram o sudeste beirão e o nordeste alentejano, ou seja, os espaços correspondentes aos actuais distritos de Castelo Branco e de Portalegre, mas conviveu com o foral de 1179, especialmente no médio e baixo Alentejo.

     O foral de 1179 não se inspirava em modelos estrangeiros, mas recolhia elementos comuns a outros paradigmas e cláusulas inteiramente originais, resultantes da vontade política do monarca e do trabalho de elaboração empreendido na Cúria. É difícil ou impossível destrinçar as inovações introduzidas por iniciativa régia das inovações que seriam os primeiros frutos do estudo do direito romano ou que, pelo menos, se deverão atribuir ao trabalho dos funcionários. Inicialmente, o foral tinha em vista as três maiores cidades do reino – Lisboa, Coimbra e Santarém –, que formavam uma espécie de triângulo sobre o qual assentava a governação, pois a corte ainda se não fixara definitivamente. A frequente presença do monarca e a sua actividade explica que o foral mantenha o município em maior dependência da autoridade régia, representada pelo alcaide ou pretor, nomeado pelo monarca. Além de um conjunto de povoações, localizadas na área do triângulo de cidades a que, em 1179, se destinou, este foral foi concedido à maior parte dos municípios do Algarve e a alguns seus vizinhos do Alentejo meridional, assim como a um conjunto de povoações disseminadas, a formar uma espécie de crescente, na área a leste do concelho de Évora, desde Beja até Alter do Chão.

    

     Encerrado o primeiro quartel do século XIV, afroixou a dinâmica que conduziu à criação de um número impressionante de municípios, ao longo de todo o território português. A diversidade que se traduzia nos vários modelos e correspondia a determinadas áreas geográficas começou a esbater-se, perante uma legislação que se aplicava a todo o território por igual, sem ter em conta o passado das várias comunidades e as suas especificidades locais, assim como objectivos tão importantes como a defesa, o povoamento e o desenvolvimento de algumas terras mais pobres, e esse panorama agravou-se com a progressiva intromissão dos funcionários régios nos assuntos da governação local.

     Os municípios sentiam-se cada vez mais coarctados na sua autonomia com a actuação dos corregedores enviados pelo governo central e com a nomeação dos juízes de fora. Se a missão inicialmente apontada aos corregedores era a de tornar mais eficiente a justiça e a administração pública, corrigindo os erros, suprindo a ineficácia dos juízes locais, dos membros dos órgãos concelhios e dos funcionários municipais, os povos acabarão por se queixar também da sua prepotência e das suas exorbitâncias. A nomeação dos juízes de fora foi apresentada como uma medida temporária, destinada principalmente a resolver o problema da execução dos testamentos, que se tinha agravado com as epidemias, mas veio a prolongar-se indefinidamente. Vários documentos, especialmente os capítulos das cortes então realizadas, mostram como a actividade dos corregedores e dos juízes de fora, inicialmente orientada para a erradicação dos abusos e para a eficácia da justiça, deu lugar a abusos e a injustiças ainda maiores.

     A criação dos “vedores” e logo dos “vereadores”, nomeados pelo corregedor, que se reuniam em lugar vedado ao público para tomar decisões acerca do que lhes parecesse mais conveniente para o governo dos concelhos, como determinava a lei que veio a ser integrada na versão de 1349 do Regimento dos Corregedores, representou a maior subversão imaginável do espírito dos municípios.

     A partir de 1362, a fundação de novos municípios passou a fazer-se através de uma carta lacónica, em que, para além da descrição dos termos ou limites, quando era o caso, se determinava simplesmente que uma localidade “seja villa per sy”, como sucedeu com Sines, em 1362, e com Cascais, em 1364. Fórmulas idênticas repetir-se-ão, especialmente a partir do início do reinado de D. Fernando.