sábado, 30 de outubro de 2021

Livro III – Identidades e diferenças

       A história dos municípios ficaria incompleta se nos limitássemos à perspectiva diacrónica em que até agora os observámos, reinado após reinado. Embora possuidores da sua própria individualidade, os municípios distribuem-se por áreas geográficas dentro das quais evoluem, relacionando-se e influenciando-se mutuamente, no decorrer do tempo.

      As condições naturais favoreciam naturalmente o aparecimento de relações de afinidade entre as aldeias existentes no termo de um município, assim como entre os municípios de uma determinada área geográfica.

       Às condições naturais juntar-se-iam factores históricos, tão importantes como a igual participação em vários acontecimentos de natureza mais transcendente, as lutas que solidariamente foram travadas, a semelhança dos problemas que urgia resolver em cada momento. À proximidade acentuada nessas circunstâncias, somar-se-ia a influência comum de factores externos, desde a reprodução de modelos de organização até aos costumes que pautavam a existência quotidiana. Não era em vão que um município se localizava no interior, junto aos caminhos do litoral, ou na proximidade de fronteiras como as da Galiza, as do reino de Leão e Castela ou a frente da reconquista.

       Interessa-nos estudar os municípios no seu enquadramento geográfico e descortinar as relações de parentesco que se estabelecem entre eles a partir do momento da sua fundação. À partida, várias questões se podem levantar e todas elas se encaminham no sentido de encontrar a razão concreta das semelhanças existentes na organização dos municípios de uma determinada área.

       Assim, interrogar-nos-emos sobre se o carácter dos municípios localizados entre o Minho e o Vouga, em que predomina uma certa matriz “burguesa”, no sentido em que o termo se há-de entender nessa época, que, mais do que à sua precoce integração no Condado Portucalense, se deverá à herança dos mercadores e mesteirais francos, que, pelo norte da Península, avançaram na peugada dos guerreiros que vieram participar na reconquista.

       Talvez nem todas as questões sobre as influências de além-fronteira na organização interna dos mais antigos municípios do Douro Superior e do Leste Transmontano encontrem resposta cabal, mas poder-se-á observar que, para além da variedade formal dos documentos fundacionais, há conteúdos que se reproduzem e definem, mais do que um passado, um espírito comum.

       Se nos detivermos no espaço que reúne o vale do Mondego e a Estremadura, até Lisboa, surpreender-nos-á a osmose da inovação nortenha, de matriz franca, com a tradição meridional, de ascendência moçárabe.

       As relações de parentesco evidenciam-se mais claramente quando os documentos fundacionais utilizam paradigmas comuns, como sucedeu, a partir do foral de Numão, na Beira-Alta. Uma série de códigos de procedimentos ou Costumes, vulgarmente designados como Forais Longos, ajudará a caracterizar a organização arcaica das comunidades instaladas nesse espaço geográfico. Será importante analisar com que rigor e porque motivos o paradigma da Beira-Alta foi adoptado numa área distante, quando serviu de modelo aos forais do Alto-Minho.

       Tal como o foral de Numão, com que tem vários pontos comuns, o foral que estabeleceu as base da organização municipal de Évora deve a sua existência a um paradigma de além-fronteira, mas, desaparecido esse paradigma, questionamo-nos sobre se não terá sido alterado, já na origem ou então ao ser outorgado em Portugal, para se adaptar aos condicionalismos de uma área geográfica próxima da frente de combate, onde a iniciativa dos cidadãos estava condicionada pela necessidade de um poder forte, concentrado nas mãos dos militares. Alguns Forais Longos poderão colmatar as limitações resultantes desses condicionalismos.

       Será, finalmente, de prestar atenção ao modo como o foral de 1179, que foi aplicado em primeiro lugar a Coimbra, Santarém e Lisboa e se destinaria, por natureza, às grandes cidades, embora depois servisse de modelo para povoações de menor importância, recolhe elementos das tradições anteriores de várias regiões do país, mas introduz um estilo novo, que aponta no rumo da centralização do poder, colocando os municípios numa grande dependência em relação ao monarca e impondo-lhes um significativo agravamento da carga fiscal.

       Estaremos atentos a essas problemáticas, nos capítulos que vão seguir-se, agrupados segundo as áreas geográficas a que se fez referência. Distinguem-se, dentro delas, algumas sub-áreas, a que será necessário reconhecer a devida importância.